Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“Pronuncia-se Teorí”

 

Quem já tentou encontrar a lógica do sistema gramatical do português ensinado no Brasil, sem ter feito estudos especializados nessa área, fica com a impressão de que ele foi esculpido (a machadadas) para ser acatado pelos pares dos que o erigiram, não para fazer alguém entendê-lo. Em outras palavras: os autores, desde a noite dos tempos positivistas, se preocuparam mais com a exatidão supostamente científica das regras do que com a probabilidade de serem assimiladas pelos estudantes da língua.

O resultado tem sido, ao longo das décadas, uma acentuada instabilidade. A “nomenclatura gramatical brasileira” de seis décadas atrás, que aguardava na escola o autor destas mal traçadas, muda tanto que nenhuma gramática daquela época seria reeditada duas décadas depois.

Não é singularidade do Reino do Jambon. Jakob Nielsen, tido como o “rei da usabilidade” dos websites, se queixava, num de seus inumeráveis tópicos, mais de dez anos atrás, que também o ensino de inglês não funciona a contento. A crítica não se dirigia à transmissão de conhecimentos de gramática, mas ao fato de que as escolas, “há 300 anos”, não conseguem fazer com que os alunos aprendam, concretamente, a escrever em inglês. Por isso, sugeria aos construtores de sites que preparassem modelos de escrita capazes de facilitar a vida do internauta sempre que este fosse solicitado a produzir um texto.

A ortografia possível

Se a gramática do português, como um todo, é praticamente impossível de ingerir e metabolizar fora dos círculos universitários (e, mesmo aí, haja controvérsia), existem regras para ajudar o usuário a não se estrepar com a ortografia e a prosódia. Não em 100% dos casos, mas ao menos em face da maior parte dos problemas do dia a dia da escrita.

Os acentos tônicos servem para indicar como a palavra deve ser pronunciada. Nesse sentido, são democratizadores: o indivíduo pode se aventurar a, por exemplo, ler em voz alta um trecho desconhecido, sem necessidade de possuir um repertório vocabular à la Rui Barbosa (que, diga-se de passagem, segundo biógrafos, explorava sistematicamente os dicionários, criando um problema para os gráficos ao escrever, com caligrafia ruim, palavras que eles nunca tinham lido).

A acentuação democratiza

Pode-se perfeitamente ensinar a qualquer pessoa, dando exemplos, que todas as palavras proparoxítonas são acentuadas. Todas. A recíproca é verdadeira; democratizadora, insista-se: quando o leitor não conhece uma palavra, mas vê que ela recebeu acento na antepenúltima sílaba, poderá pronunciá-la corretamente sem hesitar: túrbido, para ilustrar com uma que não figura no vocabulário necessariamente ginasiano empregado nos jornais.

Também não é difícil explicar que todas as palavras terminadas em “i” e “u”, caso não sejam acentuadas, são oxítonas: abacaxi, caju. Com o chamado sinal diacrítico de acentuação, serão paroxítonas ou proparoxítonas: safári, ônibus (a vogal pode ser ou não seguida de “s”).

E o mesmo se dirá das terminadas em “a”, “e” e “o”. Sem acentuação, são paroxítonas: cara, face, rosto.

Há exceções. Não podia ser tão simples.

Saí (verbo sair, primeira pessoa do pretérito perfeito do indicativo, dissílabo: sa.í) tem de levar acento porque suas duas vogais formam um hiato. Se não houver acento, o encontro das vogais vira ditongo: sai (o mesmo verbo, primeira pessoa do presente do indicativo, ou segunda pessoa do imperativo, monossílabo).

Há outras exceções, mais difíceis de memorizar. Deixemos aos curiosos o sempre proveitoso – apesar dos pesares − caminho das boas gramáticas.

Ler polonês em português

Recapitulando: a tese aqui é que a acentuação gráfica tem caráter democratizador.

Que diferença isso faz?

Vejamos um exemplo atualíssimo: a nomeação do juiz Teori Zavascki para o Supremo Tribunal Federal. Na Folha de S.Paulo de quarta-feira (26/9), a reportagem “Indicado para o STF descarta intenção de adiar julgamento” ensina: “pronuncia-se Teorí”.

Vê-se que o redator não está muito à vontade com as regras simples esboçadas acima.

Se a palavra termina em “i” e não leva acento, é oxítona. Então, a ortografia em português coincide com a pronúncia do nome na língua de origem (polonês). Se o jornalista tivesse presumido nos leitores um mínimo de conhecimento da regra, teria evitado a explicação, a rigor desnecessária.

Tê-la-ia guardado, isso sim, para o sobrenome: sem acento, Zavascki seria obrigatoriamente palavra oxítona, mas é paroxítona em polonês. Assim, teria valido a pena escrever: “pronuncia-se Zaváscki”.

No entanto, as regras mais simples de ortografia acabam ficando com cara de bobas: o redator estava errado “teoricamente”, mas certo na prática. Porque o nobre leitor, pertencente à minoria minoritaríssima que lê jornais, ouviu no rádio ou na televisão, ou alhures, a pronúncia paroxítona, e ela lhe parece natural. O que não lhe parece natural é dizer “Teorí”, ainda que a norma do idioma, diante da grafia, assim o determine.

Como é absolutamente impensável colocar explicação dessa natureza numa matéria sobre sabatina no Senado, vale a intenção de ajudar: “Pronuncia-se Teorí”. Pela letra fria da lei, é condenável, mas merece sursis.