Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Lições de uma minissaia

A ilustradora iraniana Marjane Satrapi está atrasada para uma consulta ao dentista no seu país de origem. Com a cabeça e o corpo todo coberto, ela sai correndo para pegar o ônibus porque a aula da faculdade durou mais do que esperado. De repente, uma voz no autofalante anuncia:

‘Dama de casaco azul, não corra! Dama de casaco azul, pare!’

Satrapi continua correndo até perceber que a tal dama era ela. Os ‘guardas da revolução’, então, perguntam porque ela estava correndo. Depois de explicar a situação, os guardas a ‘alertam’ que ela não deveria fazer isso de novo, pois ao correr o seu traseiro se movimenta de forma imoral. A reação foi imediata:

‘Então parem de olhar para a minha bunda!, grita a `infratora´, tão alto que consegue escapar assim de ser presa.’

A cena foi ilustrada por Satrapi na história em quadrinhos ‘Persepolis’, na qual descreve a sua infância e juventude no Irã.

A exposição dos ‘fatos’

Este está longe de ser o único problema enfrentado pela desenhista em seu país. Em um outro trecho, ela fala de uma palestra sobre moral e religião na sua universidade. O palestrante afirma que comportar-se de maneira ‘imoral’ é o mesmo que pisar sobre o sangue dos ‘mártires’ iranianos que se sacrificaram na Guerra contra o Iraque para ‘defender a liberdade’. Satrapi revida então com uma pergunta:

‘Como é que pode ser que eu, como mulher, não deva sentir nada ao olhar um corpo masculino bem torneado, enquanto eles caem em excitação se o meu véu for cinco centímetros mais curto?’

Há muitas diferenças entre o Brasil e o Irã. Os iranianos vivem em um regime político-religioso totalitário, nós em uma democracia, que pode até ser defeituosa, mas que existe. A sociedade brasileira é muito mais aberta do que a do Irã. E a situação em que Marjane Satrapi se encontrava é muito diferente da que a aluna Geisy Arruda viveu na Uniban, em São Paulo.

Satrapi estava vestida segundo os padrões fundamentalistas e se encontrava em uma situação cotidiana, correndo para pegar um ônibus. Geisy Arruda foi à faculdade arrumada para uma festa que ocorreria depois da aula. A ilustradora iraniana nem sequer fez uso do seu direito de apresentar-se de maneira sedutora, como alguns homens e mulheres costumam fazer ou todos nós fazemos em determinadas situações.

Apesar de todas estas diferenças, o episódio de ‘Persepolis’ lembra o caso da estudante expulsa da Uniban por usar um vestido curto em vários aspectos. Primeiro porque, em determinados espaços, o foco da discussão recaiu sobre a portadora da minissaia (a ‘infratora’). Segundo porque se apóia nas suas supostas intenções, e não na falta de controle dos outros sobre as suas próprias. Na nota publicada pela Uniban, os representantes da universidade são claros, ao expor os ‘fatos’: ‘A aluna fez um percurso maior do que o habitual, aumentando sua exposição e ensejando, de forma explícita, o apelo dos alunos.’

Para que serve uma controvérsia?

Provavelmente, é exatamente a diferença entre regimes totalitários religiosos e sociedades abertas como a brasileira o que torna o caso tão interessante: o mesmo modelo de interpretação sobreviveu até mesmo à democracia e ao pluralismo.

Há, no entanto, uma série de outras questões que este caso levanta e contribui para responder de forma exemplar: Afinal de contas, para que serve essa controvérsia? Para vender jornal? Para dar publicidade à garota? O que fazer em uma situação como estas, ou melhor, o que a universidade poderia ter feito para se livrar da polêmica e talvez até mesmo ‘sair por cima’? E quando alguém provoca? A saída então é ignorar? E se não se consegue ignorar, a culpa não é mesmo de quem provoca?

São estas as questões que gostaria de analisar aqui.

Para que serve uma controvérsia?

Uma controvérsia pode servir para vender jornais, para ser instrumentalizada pelos atores envolvidos e até mesmo para atrair os que ‘sobem no barco’ querendo chamar a atenção, mas as suas consequências vão muito além disso. Uma controvérsia nos ensina o que pode e o que não pode, o que fazer diante de algo que irrita, como agir em situações inesperadas, que fogem aos esquemas com os quais nós temos resolvido nossos problemas até agora.

‘Infrator’ não entra por escolha própria

Em outras palavras, uma controvérsia mostra quais os valores sociais em rigor e/ou quais os que não estão mais em voga. Ou seja, uma polêmica está em jogo se aqueles pontos de vista ‘naturais’, do senso comum, vão continuar sendo naturais. Se já não forem naturais, se continuarão a ser legítimos.

Uma controvérsia também pode funcionar como uma lição coletiva, na qual se aprende a lidar com ‘o outro’, contribuindo assim para que os grupos mais diversos possam viver em paz dentro da mesma sociedade. Até mesmo quando o outro pensa, age ou se comporta de uma maneira que eu reprovo. Ao colocar a integração social em foco, uma controvérsia se transforma em um exercício de tolerância.

Uma controvérsia serve ainda para que os defensores de posições diferentes ‘mostrem a sua cara’. Ou seja, uma polêmica faz com que as pessoas se posicionem e se reúnam em torno destas posições. Assim, torna-se claro quem é quem. Mais do que isso: uma controvérsia midiática mostra quem tem a maior capacidade de articulação, a maior representatividade e quem recebe (ou conquista) maior ressonância social.

Uma das características de uma controvérsia é que, embora ela possa ser induzida (como no caso dos polemistas de plantão), nem sempre alguém acaba no meio dela por escolha própria. No entanto, mesmo sendo um ator passivo, há possibilidades de guiá-lo de alguma forma, ainda que limitada.

Instituição era enquadrada de forma negativa

Quem acaba caindo em uma controvérsia midiática tem duas opções: calar ou defender-se. Se calar, passará por passivo ou conivente; se defender-se, vai prolongar a controvérsia. A Uniban optou pela segunda alternativa, uma decisão a priori corajosa, que – do ponto de vista da instituição – poderia ter de fato resultado em algo positivo.

A duração de uma controvérsia também depende da proeminência dos que ‘entram no barco’. As críticas recebidas pela UNE, pela União das Mulheres de São Paulo e pela Sempreviva Organização Feminina trouxeram uma sobrevida ao tema, mas o decisivo para garantir a sua relevância foi o pronunciamento dos ministros sobre o caso. Estes atores, no entanto, não se pronunciaram por causa da agressão, mas sim, por causa da atitude da Uniban de expulsar a aluna.

A Uniban ‘chamou’ atores proeminentes para a discussão também por tornar a sua decisão pública em um final de semana. Neste momento, não há aulas, de forma que é possível controlar de certa forma o comportamento dos alunos. A mídia, no entanto, funciona segundo uma outra lógica. Final de semana é um período difícil de conseguir pautas e as únicas fontes disponíveis são aquelas com as quais os jornalistas têm acesso rotineiro, como ministros, deputados, governadores. Este tipo de fonte é exatamente o que tem interesse em se pronunciar e que é ‘importante’ (segundo critérios noticiosos).

Há pelo menos dois outros erros – considerando-se apenas a perspectiva midiática – cometidos pela instituição. Ao analisar-se a cobertura midiática sobre a Uniban anterior ao episódio, observa-se que a instituição já era enquadrada de forma negativa, ocupando um espaço considerável na discussão sobre a qualidade de ensino. Ao se observar a cobertura do episódio, o enquadramento da atitude dos alunos já estava claro desde o começo. Ao invés de optar por uma virada, para tentar escapar destes quadros, a atitude da Uniban – ainda que tenha sido revista depois – só levou a ligá-la de maneira mais firme aos enquadramentos já disponíveis.

Prova de intolerância

Uma controvérsia não é só ônus. A instituição teve uma chance (talvez única) de virar o jogo e a desperdiçou. O conflito envolve uma aluna contra centenas de outros. As atitudes das centenas de outros, no entanto, encontram uma reprovação social ampla. Neste caso, havia duas opções para a instituição: tomar partido ou apresentar-se como mediadora. No segundo caso, a saída seria investir no diálogo. Em vez de mencionar um ‘seminário sobre cidadania’, como fez na nota oficial no domingo, a instituição teve a chance de chamar tanto a sociedade quanto seus alunos para a conversa, de promover seminários com organizações feministas (que depois do episódio até mesmo se dispuseram a fazer isso), de organizar um concurso com os seus estudantes de design de moda, de reagir rápida e concretamente, fugindo das molduras negativas já programadas. A opção, no entanto, foi julgar. E condenar a vítima.

Ser tolerante significa aceitar algo que se reprova. Concordar com o comportamento de alguém não é tolerar. Não concordar, nem discordar, é ser indiferente.

Aceitar uma pessoa negra desde que ela se torne branca, bem como uma mulher desde que ela se torne um homem, não é tolerar. Não só porque isto é impossível, mas porque, como escreve o filósofo alemão Rainer Forst, o componente de ‘objeção’ é intrínseco e imprescindível para o conceito de tolerância.

Assim, aceitar uma muçulmana desde que ela tire o véu, ou uma mulher, desde que ela não vista roupas sensuais, não é tolerar, embora tanto o véu quanto as roupas sejam facultativos. Embora nem todas as muçulmanas usem véu (nem sequer o mesmo modelo) e nem todas as mulheres se apresentem de forma sensual. Portanto, a postura exposta na nota oficial da Uniban de que a aluna foi ‘alertada’, mas não mudou ou de que ela ‘se negou a complementar a sua vestimenta’ não melhora a situação. Pelo contrário. É uma prova de intolerância.

O pluralismo do ambiente universitário

O conceito de tolerância tem sido muito utilizado nas discussões políticas (com relação à ideologia ou à visão de mundo) e religiosas. No entanto, é no cotidiano que a tolerância se exerce porque é neste nível que as pessoas se relacionam. As pessoas, e não as suas práticas, estão em jogo. Tolerar significa garantir os mesmos direitos para as pessoas que pensam, agem ou se comportam de formas que nós rejeitamos.

Ser tolerante é, portanto, aceitar que tanto o magro quanto o gordo tem o direito de comer uma porção de batatas fritas em um local público, que uma pessoa homossexual tem o mesmo direito de paquerar que as demais e que qualquer um pode se vestir como quiser.

Pessoas que nos provocam nas nossas convicções ou costumes sem ameaçar a nossa existência e o nosso desenvolvimento individual são, portanto, agentes da tolerância. Assim como Geisy Arruda. Tais agentes são fundamentais para que se aprenda a conviver de maneira pacífica, democrática e pluralista.

A universidade, por sua vez, é um espaço privilegiado no exercício da tolerância. Em casos extremos, é o seu último refúgio. Isto porque a universidade, mais do que outras instituições, tem não só a função de integrar, mas também de refletir. Por isso, é essencial que a universidade seja o espaço em que o grupo de solidariedade com o Tibete se encontre com o dos defensores do socialismo chinês, o núcleo dos opositores dos transgênicos conviva com o dos geneticistas, que o(a) hippie esbarre no corredor com a patricinha ou o mauricinho e que estes se respeitem e dialoguem.

O pluralismo tem uma função epistemológica: de algum destes grupos, ou ainda da troca de ideias entre eles, pode advir uma explicação que se aproxime mais da realidade do que aquelas que nós temos até o momento. Nenhuma exigência do MEC, nem mesmo uma colocação melhor no próximo ranking pode garantir per se qualidade a uma universidade, porque aquela é uma consequência do pluralismo do ambiente universitário.

A tolerância é essencial para que cada um possa viver em paz, sem ter a sua existência ameaçada, e para garantir todas as possibilidades de desenvolvimento para cada um. Todo mundo ganha com a tolerância. Já no caso contrário, o episódio da Uniban nos ensina que os primeiros a perder são os intolerantes.

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Jornalista e professora universitária, mestre em História pela UFPR e doutora em Comunicação pela Universidade de Leipzig (Alemanha)