O presidente Luiz Inácio Lula da Silva converteu-se na semana passada em garoto-propaganda. Foi à inauguração de um depósito das Casas Bahia, em São Bernardo do Campo (SP). Discursou de improviso, como de costume, e identificou sua opção de governo com a estratégia comercial de uma lucrativa rede varejista.
‘A minha concepção de tratamento deste país’, disse Lula ao empresário Samuel Klein, ‘é a concepção que o senhor teve de estabelecer a sua parceria com a parcela pobre da população.’
‘Estou convencido’, disse também, ‘de que vai acontecer neste país o mesmo que aconteceu nas Casas Bahia.’
A declaração foi pública. Quem poderá reclamar se Klein usar a declaração de Lula nas campanhas de sua rede? Seus concorrentes?
A maior parte da imprensa deu pouca importância à atuação do presidente como garoto-propaganda. Ou menosprezou o detalhe ou contou a história sem destaque, como se fosse normal e rotineira. Mas não é.
Não é habitual um presidente da República aparecer na inauguração de um depósito – ou de um centro de distribuição. A construção do depósito pode ser importante para as Casas Bahia, mas não acrescenta uma novidade à economia brasileira. Poderia justificar uma nota, nas seções de negócios.
Concepção privada, política pública
Também não é habitual um presidente da República endossar as opções mercadológicas e financeiras de uma empresa privada, conferindo-lhes o selo de aprovação da chefia do governo e do Estado. ‘Quanto mais tempo a gente der de prestação e quanto mais barata a prestação, mais as pessoas vão poder comprar, porque no meio da parte mais pobre da população, eles não têm a preocupação se [sic] vai custar cinco ou seis vezes mais.’
Nenhum pauteiro parece ter tido a idéia de mandar um repórter ligar para o Procon ou para o Idec, para ouvir algum especialista em defesa do consumidor. Será que o comentário do presidente não valia esse cuidado?
Só O Estado de S. Paulo deu em manchete os elogios de Lula às Casas Bahia. O assunto apareceu também no alto da 10ª página, mas explorado com boas maneiras. Folha de S.Paulo e O Globo mencionaram os comentários do presidente sobre a estratégia comercial da rede, mas sem destaque especial e sem evidenciar sua anomalia.
Presidente sai no lucro
No balanço geral, a cobertura de todos os jornais, sem exceção, foi lucrativa para o candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Na maior parte dos meios de comunicação, a propaganda comercial e moral das Casas Bahia foi tratada como fato normalíssimo. Ganharam importância os ataques à oposição e os auto-elogios – uns e outros, sim, fatos perfeitamente rotineiros, ainda mais em campanha eleitoral. Pelo menos uma emissora de rádio gastou bom tempo contando a história do Íbis, conhecido como o pior time de futebol do mundo, citado pelo presidente na comparação de seu governo, equiparado ao Corinthians, com o de Fernando Henrique Cardoso.
Mais uma vez Lula mostrou que sabe usar a imprensa. Sabe que pode fazer e dizer qualquer coisa, porque os jornais não negarão espaço nem destaque a seus discursos e atos de campanha, embora nada os obrigue – moral, política ou tecnicamente – a entrar nessa armadilha. Esses mesmos jornais, com o pretexto de que não se briga com a notícia, prestarão sempre um bom serviço a políticos espertos. Isso ocorreu, por exemplo, com Jânio Quadros, que ora cortava, ora deixava crescer a barba para ganhar espaço nos jornais. E sempre conseguia.
No entanto, notícia não é, necessariamente, o que ocorre segundo a agenda oficial e rotineira. Nesse episódio, a melhor notícia, o homem mordendo o cachorro, foi a atuação de Lula em relação às Casas Bahia. Para começar, como explicar a presença de um presidente da República naquela inauguração?
Uma boa história poderia começar por aí.