Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Maior pressão do jornalista é a consciência

A recém-nascida revista , de Porto Alegre, traz em seu número 1 (1/7/2007), um artigo assinado pelo jornalista Ronald de Carvalho, no qual ele revela detalhes de um dos casos mais polêmicos do jornalismo na televisão brasileira: a edição política do Jornal Nacional na noite de 13 de dezembro de 1989. A história dos bastidores daquela edição é – como admite o autor do texto – ‘suja, feia e pouco lembrada’, mas suscita uma reflexão ética sobre o fazer jornalismo.

Dezembro de 1989 era o final da campanha da primeira eleição direta para presidente desde que Jânio Quadros fora eleito em 1960. Haviam se passado vinte e nove anos, entremeados por uma ditadura militar que chegara a completar a maioridade antes de passar o governo para um civil eleito pelo voto indireto do Congresso Nacional. Apenas um ano antes, em 5 de outubro de 1988, a Assembléia Nacional Constituinte convocada para redigir uma nova Carta Magna instituíra um Estado democrático, no qual a soberania popular seria exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto. Os brasileiros com menos de 47 anos nunca tinham votado para presidente.

Depois desse longo jejum político, o momento foi de euforia com comícios festivos, marchinhas, bottons e faixas por todos os lados. Ao todo eram 22 candidatos – incluindo a candidatura impugnada do homem do baú, Sílvio Santos. Entre eles, havia homens públicos com um passado de lutas contra a ditadura, como Ulisses Guimarães e Leonel Brizola, e políticos que dela haviam participado, como Aureliano Chaves e Paulo Maluf. No horário político, os discursos variavam da intelectualidade gramsciana de Roberto Freyre ao nacionalismo breve (15 segundos) de Enéas.

Preço muito barato

O povo votou pela renovação e elegeu para o segundo turno dois candidatos que eram jovens e novos no cenário político nacional: o jornalista e empresário Fernando Collor, governador do Estado de Alagoas, e o metalúrgico e líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva, responsável pelo reinício do movimento grevista no final dos anos 1970 e deputado constituinte pelo estado de São Paulo. A campanha polarizou e dividiu eleitores. De um lado, Collor, do Partido de Renovação Nacional (PRN), candidato dos liberais e das elites econômicas. Do outro, Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT), candidato das esquerdas operária e intelectual.

Na reta final da campanha, o crescimento de Lula nas pesquisas eleitorais assustou principalmente a classe empresarial e os banqueiros, que temiam um possível seqüestro dos ativos financeiros de particulares. Os marqueteiros de Collor buscavam trunfos contra o candidato-operário e o encontraram na enfermeira Miriam Cordeiro.

Ronald de Carvalho lembra que Miriam Cordeiro não foi uma invenção da assessoria de Collor. Ela foi revelada em março de 1989 por Luiz Maklouf Carvalho, repórter do Jornal do Brasil, que descobriu que Lula tinha uma filha, Lurian, nascida de uma relação anterior ao casamento com Marisa Letícia. A mãe de Lurian iria votar em Collor, um prato cheio para Leopoldo Collor e Egberto Batista Miranda que, depois de nove meses, resolveram explorar o fato na campanha. Ao custo de 24 mil dólares, o depoimento de Miriam Cordeiro foi gravado para o programa eleitoral do PRN no pátio da produtora Mikson, em Moema, São Paulo, no dia 11 de dezembro. Foi um preço muito barato para o grande estrago que a aparição da enfermeira causou no eleitorado e no equilíbrio emocional de Lula.

A tomada de decisão

Miriam acusou Lula de lhe ter oferecido dinheiro para que abortasse e, mais, ela o denunciou como racista. A gravação foi ao ar durante a terça-feira, 12 de dezembro, na hora do almoço e do jantar. No dia seguinte, a TV Globo mostrou as imagens do programa do PRN no Jornal Nacional, que antecede a novela no horário nobre da televisão brasileira. A peça publicitária foi vista por um número de telespectadores maior do que o da audiência do horário eleitoral gratuito. O impacto foi imediato. Na quinta-feira, dia 14 de dezembro, no mesmo canal, um Lula visivelmente nervoso não conseguiu superar seu oponente no último debate da campanha. Três dias depois, no domingo de 17 de dezembro, os eleitores foram às urnas para eleger pelo voto direto seu novo presidente: Collor de Mello.

Esse episódio, que encobre uma das maiores baixarias da política brasileira, todos nós já conhecíamos. O que não se sabia – e agora Ronald de Carvalho revela – é como foi a tomada de decisão de veicular as imagens do programa do PRN pelo Jornal Nacional. O jornalista, que era o editor de Política da TV Globo em dezembro de 1989, lembra que houve grande repercussão das declarações de Miriam nos jornais do dia 13 de dezembro e que, naquela quarta-feira, elas constavam da pauta do Jornal Nacional.

Sem pressões ou interferências

Naqueles dias, Carvalho organizava o noticiário político com o diretor de jornalismo de São Paulo, Wianey Pinheiro, trazido ao Rio de Janeiro para fortalecer a equipe. Os dois não queriam mostrar o material, mas o diretor da Central Globo de Jornalismo, Armando Nogueira alegou que ‘jornalista não deve brigar com a notícia’.

Mesmo sabendo que usar as imagens de um programa eleitoral em um programa de jornalismo seria um precedente perigoso, a decisão foi tomada. Foi uma decisão de três jornalistas. Carvalho afirma que nunca houve pressões políticas, interferências empresariais ou ordens da família Marinho para que se mostrassem as declarações de Miriam no noticiário. À época, isso foi aludido por alguns comentaristas políticos e, por anos, sustentado por muitos membros do Partido dos Trabalhadores e repetido por todos os eleitores inconformados de Lula.

Carvalho admite que se a decisão fosse outra, também outro teria sido o curso da História. Depois de 18 anos e quatro eleições presidenciais, constata-se que a maior pressão do jornalista é a sua própria consciência.

******

Lingüista, integrante do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília, Brasília, DF