Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Mais tropas brasileiras no Haiti

O Jornal da Cidade, principal veículo de comunicação da imprensa escrita em Sergipe, traz como epígrafe uma frase de Beaumarchais, autor das peças O Barbeiro de Sevilha e As Bodas de Fígaro: ‘Sem liberdade de criticar, não existe elogio sincero’. Alguma coisa se perdeu dessa máxima durante a reportagem ‘Militares do 28 BC seguirão para o Haiti’, publicada na quarta-feira (19/1), da qual tomei conhecimento a partir do twitter de seu editor de política, o jornalista Eugênio Nascimento.

O 28 BC em questão é o ’28º Batalhão de Caçadores’, condecorado em 1993 com a Ordem do Mérito Militar pela sua participação efetiva na história do país ao longo dos seus 170 anos de existência. Um dia antes da publicação do jornal, o 28 BC enviou para o Haiti o segundo pelotão sergipano a integrar a Minustah, oficialmente a Força de Paz da ONU no Haiti, formada por exércitos de mais de trinta países e comandada pelo exército brasileiro. Esse pelotão sergipano é composto de 26 militares que, segundo o jornal estão ‘preparados para o trabalho de estabilização do Haiti’. Fora isso, nenhuma palavra do jornal sobre a atuação dos militares no país, senão através de citações diretas dos integrantes do pelotão ou dos seus comandantes, como o coronel Jefferson Hernandes, que explica que ‘a missão deles é proporcionar segurança à população, bairros, às estradas, além de colaborar na ajuda humanitária, com apoio de saúde, na distribuição de alimentos e distribuição de medicamentos, bem como participar da recuperação da infraestrutura do país’.

O restabelecimento da soberania

Um pouco mais adiante, outra citação do comandante do 28 BC: ‘Nossos soldados já enfrentaram diversos combates, dificuldades e doenças, mas sempre estão dispostos a cumprir a missão que lhes foi imposta, de propiciar segurança à população haitiana, colaborando com aquele povo.’ Depois disso, quando o leitor esperava alguma análise sobre a situação do Haiti e a presença das tropas brasileiras naquele país, o jornal passa ao relato das ‘despedidas emocionadas’ dos parentes dos militares, o que ocupa mais da metade da matéria.

Com todo o respeito e solidariedade às famílias desses militares, que, por força do ofício, deixarão seus entes queridos para assumir uma missão de risco em terras estrangeiras, é preciso dizer que o Jornal da Cidade falhou em sua missão e traiu sua epígrafe ao transformar o tema político em um drama familiar. Afinal, o que o comandante quis dizer com a frase ‘nossos soldados já enfrentaram diversos combates, dificuldades e doenças’? E por que enviar mais soldados ao Haiti, quando toda a comunidade internacional está mobilizada pela dissolução da Minustah?

Em fevereiro de 2004, um comando do exército estadunidense organizou um golpe de Estado que derrubou e expulsou do Haiti o presidente democraticamente eleito Jean-Bertrand Aristide. Dois meses depois, o país encontrava-se mergulhado num caos social, o que serviu de pretexto para que o Conselho de Segurança da ONU, formado pelas principais potências imperialistas do mundo, organizasse a Minustah, supostamente uma Força de Paz, mas que, em pouco tempo, tomou o controle militar, econômico e político do país. Membros do governo deposto foram mortos na prisão, enquanto muitos (a estimativa é de milhares) de seus partidários foram assassinados ou se tornaram presos políticos, sem qualquer julgamento.

Para disfarçar a missão de ocupação e pilhagem que passou a ser realizada no Haiti, os EUA, mandantes do golpe, solicitaram ao Brasil – que ainda tenta barganhar uma posição permanente no Conselho de Segurança da ONU – que assumisse a direção operacional da Minustah. Desde então, o Haiti perdeu a sua soberania, o povo foi afastado das decisões políticas e a economia foi entregue ao capital estrangeiro, que privatizou toda a produção haitiana.

Com os produtos de primeira ordem cada vez mais caros, as únicas saídas para a população eram o mercado informal, brutalmente combatido pela polícia, ou as rotinas de até catorze horas de trabalho por salários miseráveis pagos pelas ONG´s a serviço de grandes empresas. Em poucas palavras, o Haiti, primeira República no mundo nascida de uma revolução de escravos negros contra seus antigos colonizadores, foi novamente transformada numa colônia de exploração, dessa vez com o apoio militar do Brasil.

Tudo isso aconteceu antes dos terremotos do ano passado que devastaram o Haiti, quando poucas pessoas no Brasil davam importância à presença do nosso exército naquele país, apesar das inúmeras denúncias do povo haitiano, através de suas centrais sindicais, contra a brutalidade da Minustah. Desde 2004, o Acordo Internacional dos Trabalhadores e dos Povos (AcIT), a Associação dos Trabalhadores e Povos do Caribe (ATPC) e dezenas de organizações políticas e sindicais lutam ininterruptamente pelo restabelecimento da soberania do Haiti, o que começa pela retirada das tropas de ocupação. Porém, a IV Internacional, principal órgão da luta em defesa dos direitos dos trabalhadores em todo o mundo (cuja seção brasileira é a corrente ‘O Trabalho’, do PT), afirmou que ‘o movimento operário oficial em escala internacional viu com complacência a ação da Minustah em razão do fato de que era o governo Lula, originado no PT do Brasil, que lhe dava caução’.

‘Sete horas atirando sobre uma população desarmada’

O curto documentário O que se passa no Haiti? (What’s going on in Haiti?), de Kevin Pina, disponível na internet, denuncia uma série de massacres liderados pela ONU contra a população carente da favela Cité Soleil, uma das mais pobres do Haiti e cenário das principais manifestações políticas. O primeiro massacre foi em 05 de julho de 2006, quando 350 soldados da ONU mataram dezenas de civis desarmados, crianças inclusive, todos com tiros na cabeça. Já na madrugada de 22 de dezembro de 2006, tanques e helicópteros da ONU, registrados pelo cinegrafista, usaram artilharia pesada, durante horas, num massacre sem alvo definido que assassinou pessoas em suas camas, mulheres grávidas, trabalhadores e crianças, inocentes e desarmados.

O fato voltou a se repetir poucos meses depois, em 9 de fevereiro de 2007, apenas dois dias após uma manifestação popular pacífica que levou cem mil haitianos às ruas. A favela Cité Soleil está sitiada desde 2004 e é vítima frequente dos ataques da ONU, que acontecem como retaliação às manifestações lideradas por militantes políticos e organizações sindicais que exigem o retorno do presidente Jean-Bertrand Aristide e a retirada da Minustah do país.

O documentário de Kevin Pina ainda mostra que, para tentar impedir que essas notícias de massacres contra civis sejam divulgadas, a Minustah proíbe que as ambulâncias da Cruz Vermelha entrem na favela para socorrer os feridos. Numa dessas ações, até a Escola Evangélica de Medicina, que funcionava em Cité Soleil, foi destruída pela ONU e 230 casas foram completamente destruídas só no ataque de dezembro de 2006.

A participação do Brasil na ocupação militar do Haiti sempre foi denunciada pelos setores mais progressistas da nossa sociedade, mesmo antes do envio das nossas tropas. Em março de 2004, dezenas de intelectuais e militantes, como Markus Sokol, do Diretório Nacional do PT, o professor Emir Sader, os escritores Fernando Morais e Eduardo Galeano e o ex-candidato à presidência Plínio de Arruda Sampaio lançaram o manifesto ‘Que o povo do Haiti decida sobre o seu próprio futuro’, endereçado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Alguns trechos do documento:

‘Dirigimo-nos a sua excelência para solicitar que não sejam enviadas tropas brasileiras para participar de uma suposta `força de paz´ no Haiti, como foi noticiado. As tropas norte-americanas, canadenses, francesas e chilenas que lá se encontram são tropas de ocupação, que designaram um governo títere, violando a soberania nacional do Haiti. Já houve haitianos mortos por soldados norte-americanos, ao mesmo tempo em que as autoridades provisórias atuais já afirmaram que não haverá eleições antes de dois anos. Fica claro, assim, o caráter de ocupação que a presença das tropas estrangeiras tem, quando a solução democrática da crise tem que ser dada pelos próprios haitianos.’

Como o presidente Lula não deu ouvidos aos apelos da sociedade e cedeu à pressão internacional, as manifestações pela retirada das tropas brasileiras e dissolução da Minustah se intensificaram, partindo, inclusive, do próprio PT, sobretudo da mencionada corrente ‘O Trabalho’, em função do seu caráter internacionalista. Em 2008 (ano em que o Haiti foi atingido por furacões que demonstraram a incapacidade da Minustah para atuar no salvamento da população, evidenciando seu verdadeiro caráter opressor), a entidade brasileira ligada ao movimento estudantil Juventude Revolução, filiada à Internacional Revolucionária da Juventude, engajada na luta pela soberania do Haiti, organizou um abaixo-assinado utilizando uma carta do militante haitiano Davi Josué ao presidente Lula. Na carta, entre relatos das cenas de violência que presenciou no seu país, Davi Josué diz ao presidente brasileiro:

‘Alguma coisa desonesta se passa com seus soldados no Haiti. Os soldados brasileiros fazem raides terríveis contra os habitantes de comunidades pobres e sem defesa no Haiti, deixando em sua esteira um rastro de sangue, lágrimas e mortes. A responsabilidade repousa em você, presidente da Silva. Você é o seu comandante-em-chefe. (…) Presidente da Silva, segundo relatório da ONU depois de um combate, os seus soldados passaram sete horas atirando sobre uma população desarmada. Eles gastaram 22.000 cargas de munição, sabendo que visavam alvos sem motivo. Não é possível que isso seja o melhor que o povo brasileiro tem a oferecer. Como isso pode ocorrer enquanto você é o presidente do Brasil?’

Epidemia de cólera matou 2.400 pessoas

Desde então, a situação do Haiti só piorou, por um lado, com o agravamento da miséria e a pilhagem promovida pelo capital internacional e, por outro, a supressão violenta dos movimentos sociais e o desrespeito aos direitos civis e humanos pelas mãos da Minustah, na verdade as duas faces da mesma moeda. Até que, em 2011, veio o terremoto de sete graus na escala Richter, que devastou o país e deixou quase 250 mil mortos. As imagens da destruição podem ser vistas no documentário Haiti: estamos cansados!, de Daniel Santos, que estava no país no dia do terremoto, com um grupo de pesquisadores da Unicamp. Era de se esperar, e, de fato, muitos ainda acreditam nisso, que a Minustah desempenhasse um papel fundamental no socorro das vítimas do terremoto.

O documentário de Daniel Santos, entretanto, revela que a ajuda internacional demorou muitos dias para chegar e, ainda assim, de forma insuficiente. A população teve que sobreviver sozinha por dias, sem água ou energia elétrica, sem assistência para os feridos, lidando sozinha com os seus mortos. Enquanto isso, a Minustah, junto com exército estadunidense, se aproveitava do terremoto para intensificar a ocupação imperialista.

A imprensa internacional denunciou que o socorro médico demorou a chegar porque todos os aeroportos estavam fechados pela Minustah e pelo exército dos EUA, reforçado com um contingente de mais de dez mil soldados. Uma centena de soldados da 82ª Divisão Aerotransportada desembarcou no país e ocupou o palácio presidencial, enquanto a bandeira estadunidense tremulava nos aeroportos. O golpe estava definitivamente consolidado. Logo em seguida, o Pentágono e o Departamento de Estado, sob o comando de Hillary Clinton e seguindo as ordens do presidente democrata Barack Obama, lançaram uma operação aérea, marítima e terrestre, denominada ‘Sentry Vigilante’, para evitar que os haitianos, desesperados, tentassem deixar o país.

A partir de maio, a população haitiana voltou às ruas para diversas manifestações que exigiam a saída do presidente René Préval, marionete do governo americano, e a dissolução da Minustah, que continuava a reprimir brutalmente a população. Pouco depois, em junho, a rede estadunidense de TV CNN anunciou ‘o confronto mais grave desde o terremoto’ entre a população e a Minustah. O conflito começou porque soldados brasileiros invadiram a Faculdade de Etnologia da Universidade do Estado do Haiti para prender um líder estudantil. A ONU admitiu que foram lançadas ao menos trinta e duas bombas dentro da Universidade durante a invasão das tropas brasileiras, mas não houve investigação ou punição. ‘E, para agravar a situação ainda mais, a Minustah provocou uma epidemia de cólera que já matou 2.400 pessoas e contaminou mais de 109 mil, provavelmente devido à negligência criminosa e grosseira de despejar dejetos humanos no rio Artibonite’, afirmou Mark Weisbrot, codiretor do Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas, em Washington, e presidente da Just Foreign Policy, em texto publicado na Folha de S.Paulo semanas atrás.

É preciso que a mídia faça sua parte

Enquanto centenas de milhares de haitianos ainda vivem em barracas improvisadas, sem segurança ou saneamento, o governo estadunidense organizou e financiou eleições internacionalmente reconhecidas como fraudulentas, que deixaram de fora o maior partido do país e bloquearam o acesso de milhares de haitiano às urnas. Ainda segundo Weisbrot, o governo dos EUA ‘não permite que haja democracia no Haiti porque os haitianos inevitavelmente escolheriam um governo de esquerda. Telegramas divulgados recentemente pelo WikiLeaks ilustram que o objetivo de Washington é manter o controle sobre o governo do Haiti e, especialmente, sobre suas relações exteriores.

A Minustah custa mais de US$ 500 milhões por ano, sendo que a ONU não consegue levantar nem um terço desse valor para combater a epidemia que a própria missão causou. E agora ainda pede aumento dos recursos para a Minustah, para além de US$ 850 milhões. Organizações e líderes políticos progressistas, incluindo a maior confederação sindical – a CUT –, o MST e líderes políticos do PT, como Markus Sokol, pediram que o Brasil retire suas tropas do Haiti. Dilma deveria dar ouvidos à sua base e à população do Haiti, que não pediu esse exército de ocupação, que não tem razão legítima para estar lá. Como afirmou a CUT, o Brasil deveria enviar médicos e engenheiros, não tropas de ocupação.’

Em seu discurso de posse, a presidente Dilma Rousseff afirmou que a política externa durante o seu governo será marcada ‘pela promoção da paz e respeito ao principio de não-intervenção’. O envio de soldados sergipanos ao Haiti evidencia que isso não se aplicará a esse país. E, mesmo diante desse cenário de violência contra o povo haitiano comandado pelo exército brasileiro, denunciado por toda a imprensa internacional, o Jornal da Cidade preferiu simplesmente transcrever meia dúzia de depoimentos de familiares dos soldados do 28 BC que seguem rumo ao Haiti. Com diversas menções a Deus, os soldados pediam forças para executar sua missão, que julgam ser – ou, pelo menos, alegam ser – a de ‘ajudar aquele povo sofrido a melhorar as condições e ajudá-lo a enfrentar esse momento de recomeço’. Mães, esposas e irmãs fizeram discursos emocionados, cheios de esperança de que seus entes queridos voltarão seguros para casa daqui a sete meses.

Na impossibilidade técnica ou ideológica de fazer uma análise séria, investigativa e crítica sobre o acontecimento, o Jornal da Cidade optou por uma exibição de falsa compaixão mal disfarçada de notícia que, ao louvar a suposta nobreza do ideal e grandeza da atuação do exército brasileiro no Haiti, mascara a realidade e fere ainda mais o povo haitiano. Se aos familiares de todos os soldados brasileiros compete rezar pela segurança deles, cabe à sociedade, através dos partidos, dos órgãos classistas e dos movimentos sociais, exigir o imediato retorno das tropas brasileiras, a dissolução da Minustah, o envio de verdadeira ajuda internacional (com médicos, enfermeiros, engenheiros etc.) e o respeito à soberania do Haiti. Mas, para isso, é preciso que os meios de comunicação também façam a sua parte.

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Professor, Feira de Santana, BA