Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Maria Antonieta e o malandro

Já há alguns anos, vivo um problema: meu fígado não suporta mais leitura de “jornalões” ou “revistões”, tampouco a audiência às “radionas” (no feminino, pois trato das emissoras) reacionárias do meu brasilzão, quanto menos do que dizem ser “jornalismo” nas TVs. Isso me expõe ao constante risco da ignorância sobre os fatos cotidianos, no qual não mergulho porque, felizmente, parece que no mundo não há mais novidades. Então, meu amargor oriundo dos absurdos do que ainda ousam chamar de “imprensa” mantém relativamente sob controle.

Entretanto, é relativamente sob controle, uma vez que não passo incólume ao que a mídia em geral expõe, noticia e divulga. Afinal, vivo em sociedade e muitas vezes, quase sem querer, acabo lá contatando tais absurdos, perpassando alguns modismos ou alguns nomes da moda. Um destes aí, da tradição reacionária da mídia escrita brasileira, é Luiz Felipe Pondé, que escreve artigos na Folha de S.Paulo. Não bastasse tudo o que eu ouço falar, além de alguns excertos, uma colega professora já me “brindou” com três recortes de artigos desse senhor.

No primeiro deles, ele elogiou o livro de Leandro Narloch (o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil), dizendo que o mesmo se amparava em boa documentação e “notas bibliográficas fartas” – aliás, no que ele tem razão, mas esqueceu de observar que 9 em cada 10 referências do Guia… sirvam para sustentar as teses correntes, e não a irônica e quase fascista visão de Narloch; no segundo deles, chamou os manifestantes de Londres de “sem-iPad” – e eu concordaria com ele porque realmente os incidentes pareceram muito mais fruto da insatisfação por não se conseguir alguns confortos do modo de vida liberal burguês do que insatisfação com a situação em si; entretanto, é evidente que tamanho consumismo é fruto, sim, da dinâmica social que vivemos, o que ele nega, atribuindo culpa ao comportamento moral, ou à falta de moral dos indivíduos (calma, não pasmem ainda!).

A moral do malandro

Por fim, no terceiro deles, publicado recentemente (12/9/2011) sob o título “Marketing francês”, ele busca diminuir o valor histórico da Revolução Francesa tachando-a como mera experiência de “marketing político”. Isso tudo porque o “povo”, que ele trata tal como um falso axioma, foi “violento” e, vejamos, das revoluções burguesas, foi naquela lá da França que essa (para ele) misteriosa entidade chamada “povo” tomou parte efetivamente, sem meramente contemplar ou ser levado de arrasto. Como se não bastasse, ele critica a razão revolucionária oriunda do Iluminismo – essa não me surpreende, em virtude da sua tamanha religiosidade sem religião.

Por fim, citando uma única historiadora (o que, segundo seu conceito, permite considerar que seu artigo apresenta uma “farta” base bibliográfica), as revoluções burguesas britânica e estadunidense foram muito mais importantes “pra mim, pra você, pra nós” do que o Iluminismo e a Revolução Francesa. Entendo suas razões… Os dois movimentos foram elitistas, não com o “povo”, embora tenham precisado dele em alguma medida. E, é claro, ele não podia terminar seu artigo sem dar uma cutucadinha em Marx, a grande pedra no seu sapato.

Sinceramente, eu ri… Lembrei primeiro, da versão “O Malandro”, de Chico Buarque: o “povo”, e “violento”, paga o pato por todos os problemas do mundo, assim como o malandro pagou o pato só porque filou uma cachacinha; já o português, o atravessador, o alambique e os banqueiros são vítimas da “falta de moral” do malandro, então podem roubar, desviar, falsificar, sobretaxar etc. Assim como a elite burguesa francesa, que depois não “aguentou o tranco” e abaixou a cabeça para o córsego baixinho.

Postura político-ideológica

Depois, lembrei de Maria Antonieta, que sugeriu ao povo comer brioches na falta de pão. Ora, o “povo”… Sans-culottes? Provavelmente só se revoltaram porque não tinham recursos para adquirirem a pecinha do vestuário. Sans-culottes antes, “sem-iPad” hoje… Fome? Que fome, qual nada! Voto universal para quê? Certos estavam os protestantes ingleses que derrubaram o rei, enquanto o povo trabalhava. Ou a elite colonial que, até o Primeiro Congresso da Filadélfia, preferia manter os privilégios coloniais ao invés de uma independência que pudesse dividir o poder, ainda que mal e porcamente, com o “povo”.

Realmente, a Revolução Francesa é supervalorizada em relação às revoluções Puritana e Gloriosa e à Independência das 13 Colônias; mas há uma explicação clara e evidente para o fato, que não reside na participação do “povo” no movimento. O problema, que Pondé jamais poderá enxergar – tamanha sua passionalidade ideológica, que ele tanto nega –, é que o ideário liberal-burguês já nasceu com uma mentalidade como a dele, que tira do “povo” quase até mesmo o direito de existir.

É hora de uma série de articulistas, tão presentes e tão repercutidos na mídia, ao menos terem a coragem de manifestar transparentemente a postura político-ideológica que defendem. Ao público, é impossível continuar admitindo que tais “pensadores” arrotem independência, coerência, racionalidade, neutralidade e imparcialidade, quando o âmago das suas teses se alinha claramente com uma maneira de ver o mundo.

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[Sérgio Luiz do Prado é professor, São Bernardo do Campo, SP]