Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mas quem cresce são os evangélicos

A antropóloga Clara Mafra, autora do livro Os Evangélicos (Rio, Jorge Zahar Editor, 2001), publica instigante artigo sobre o avanço dos pentecostais na periferia das grandes cidades brasileiras. O texto pode ser lido no mais recente número da revista Insight Inteligência (Ano IX, número 36, março de 2007), disponível aqui. Diz ela que enquanto os católicos ocupam as áreas de urbanização consolidada, os evangélicos e pentecostais expandem-se nas periferias, muito mais vulneráveis socialmente.

O Censo/IBGE já mostrava que os evangélicos tinham passado de 8% da população em 1990 para 20%, em 2000. Foi identificada também uma sensível mudança na paisagem arquitetônica das novas periferias, representada pela multiplicação de templos evangélicos, de diferentes tamanhos. ‘O catolicismo, certamente por sua centralidade institucional, tem sido mais moroso na fundação de novas igrejas’, acrescenta a professora.

A Zona Oeste do Rio de Janeiro presta-se a caso representativo da notável expansão dos evangélicos. Enquanto a média do município é de 11,3%, na Zona Oeste é de 20%. Ali pode ser testada e negada com números a afirmação de que o Brasil é um país católico. Era! Ainda que mais de 90% da população de identifique como católica, na Zona Oeste do Rio este número cai para 50%.

Contudo, se avaliada pelo número de templos, a realidade que aparece é outra. Raras são as igrejas católicas por ali. Predominam as catedrais evangélicas, os templos da Assembléia de Deus, da Igreja Congregacional, da Deus é Amor e de inúmeros templos de outras pentecostais.

Há toaletes?

O Brasil não é mais a maior nação católica do mundo e talvez nunca tenha sido. É que predominou, hegemônica, a Igreja Católica Apostólica Romana, ligada também a instituições como escolas, colégios, universidades, maternidades, hospitais e Santas Casas de Misericórdia.

Bem antes de os cultos evangélicos e pentecostais ganharem a relevância que têm hoje, foram apagadas outras manifestações de nossa religiosidade, como os cultos afro-brasileiros, quase invisíveis na paisagem urbana, pois são feitos nas casas de pais ou de mães-de-santo. E sua extensão vai no máximo até o quintal da residência-templo.

Em Madureira, conhecido bairro do Rio, a Assembléia de Deus conta com mais de 6.000 integrantes e é sede nacional de 110 igrejas espalhadas no Brasil e no exterior. Ali há também vários prédios anexos: dois auditórios, sala de reuniões, salas de aconselhamento pastoral, livraria, refeitório, lanchonete, toaletes. Os pastores não se esqueceram de nada. Quantas igrejas católicas têm toaletes para os fiéis?

Faltou dinheiro

Segundo nos informa Clara Mafra, na década de 1930 Madureira já era importante centro industrial e comercial, além de convergência de importante complexo ferroviário, quando lá chegou um pastor chamado Macalão, que começou a tocar violino e a pregar nos trens da Central do Brasil.

Logo foi necessário reunir os convertidos em outros lugares e ele passou a falar-lhes em galpões alugados, não só em Madureira, mas também em Bangu. Seus ouvintes eram operários, balconistas manobristas de trem, militares, serventes, ambulantes, donas-de-casa, servidores gerais.

Nos fins da década de 1940, começou a nascer o templo para abrigar aquela multidão de salvos. As dificuldades não foram poucas. O dízimo era pago à base de escambo: os fiéis levavam galinhas, ovos, patos e doces, contribuindo também com mão-de-obra, principalmente em mutirões.

Outros recursos foram utilizados para obter dinheiro vivo, até então proveniente apenas das mãos de comerciantes e industriais do lugar, que viam em Macalão um verdadeiro líder religioso. Sua credibilidade era tanta que fez passar até um concurso de miss para angariar fundos. As cartelas de votos eram vendidas pelos fiéis.

E deu-se pequena confusão. Uma feia ficou em primeiro lugar: sua família e parentes, numerosos, com muitos membros assembleianos, despejaram um número de votos invencível. O resultado foi que ganhou a feia; a bonita ficou em segundo lugar.

Outras curiosidades marcaram a construção. José Gualiato, que fez os vitrais, porque o vitralista francês não pôde vir – faltou dinheiro para trazê-lo – contou ao pastor Macalão que recebeu em sonhos um chamado do Senhor para a tarefa. Ajoelhados os dois, veio do Alto a confirmação do ‘chamado’. Ainda assim, para ajudar ao Senhor, Gualiato foi trabalhar numa vidraçaria, onde aprendeu a cortar vidro, desenhar o metal, compor as cores.

Objetos da ira

Não é só nos desfiles carnavalescos que subúrbios e periferias mostram que ‘pobre gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual’, segundo o dito de Joãozinho Trinta. Também nessas igrejas é possível constatar riqueza, luxo, exuberância.

Esperemos que a mídia, nesses dias que antecedem a visita do papa Bento 16, não perca a excelente oportunidade de pautar melhor as suas seções de religião, oferecendo ao distinto público um espelho menos obscuro das complexas questões religiosas que moldam nossa convivência social.

Talvez descubramos o que antropólogos e sociólogos já sabem há muito tempo, como se depreende de seus ensaios e pesquisas ao longo das últimas décadas, entretanto ainda confinados a publicações de poucos leitores: o Brasil católico que a mídia mostra, ou não é católico, ou é de um catolicismo bem diferente do de Roma.

O Vaticano já sabe disso, pois dele tudo pode ser dito, menos que ignore o que precisa saber – afinal tem informantes em todo o mundo, e vai usar a visita do papa e a canonização de Frei Galvão como inflexões de uma estratégia que busca recuperar o terreno perdido.

O papa Bento 16, denominação escolhida para substituir o nome civil de Joseph Alois Ratzinger, completará 80 anos no dia 16 deste abril. Papa há apenas dois anos, está numa encruzilhada. No passado, Ratzinger ajudou Leonardo Boff a publicar sua primeira tese. Depois rompeu com ele, tão logo o protegido tomou o caminho da Teologia da Libertação.

Será surpresa se começar a mudar de novo? De um homem inteligente espera-se menos ortodoxia em temas e problemas que exigem adaptações e mudanças no projeto de manter viva a ‘sã doutrina’ ou manter viva e sã a doutrina. E o papa, embora muitos façam questão de ignorar, é um grande intelectual, de sólida formação humanista, não apenas religiosa.

Movimentos como a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base, objetos da ira de conservadores, evitaram que a conquista de pentecostais e evangélicos fossem maiores ainda.

Vamos ver como a Igreja resolve o impasse sob a batuta de Bento 16.

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PS: Há muitos anos não vejo Clara Mafra, filha da artista plástica Inge Jost Mafra e do advogado Ben-Hur Lenz César Mafra (já falecido). Lembro que quando menina – seu apelido era Tuca – aprendeu com a mãe a fazer doce e fez um pavê que durou muitos dias. A sobremesa passou à História como ‘o pavê da Tuca’. Ela deve ter deixado o doce passar do ponto, o que jamais acontece com seus ensaios, sempre pertinentes e bem escritos.

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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde coordena o Curso de Letras; www.deonisio.com.br