Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mídia coronelista e severina

A grande imprensa brasileira critica com muita propriedade e eloqüência tanto o coronelismo do Nordeste como o ex-deputado Severino Cavalcanti. Entretanto, a mesma imprensa se esquece de fazer autocrítica e de ver que ela própria é fortemente coronelista e severina, não na mesma amplitude de cidades nordestinas do interior, mas, o que é pior, em amplitude nacional. O primeiro sinal disso é que o grosso da imprensa nacional, que domina a informação no país, pertence a nove famílias, uma versão ampliada das famílias dos coronéis nordestinos.

Essa mídia é coronelista enquanto usa o poder para influenciar e manipular os destinos políticos e econômicos do país, para perpetuar o status quo, quando escolhe candidatos e faz tudo o que pode para que a população os eleja, um procedimento semelhante ao dos coronéis. E é severina ao fazer isso incorporando características que ela própria aponta no Severino Cavalcanti, ou seja de forma retrógrada, pouco ou nada esclarecida e reflexiva, não republicana e antidemocrática, ultrapassada, que, em vez de favorecer o desenvolvimento do país o atravanca.

Tratamento desigual

Não se faz injustiça ao apontar isso na mídia brasileira, também não é exagero; as provas estão nas manchetes e textos que todos os dias ela nos apresenta. Exemplos de coronelismo e severinismo midiáticos não faltam e alguns se tornaram clássicos. Por exemplo, o ocultamento da campanha pelas eleições diretas na Globo, a eleição de Fernando Collor, em grande parte creditada à Globo, mas na qual toda a grande imprensa embarcou, procurando promover Collor, sem que o tal candidato tivesse a consistência, o lastro histórico e político que ele dizia e que a imprensa difundia à exaustão.

Como diz o escritor Rubem Alves, o ser humano tem mania de transformar em verdades idiotices que são muito repetidas. E assim a maioria do país acreditou que Collor era o caçador de marajás, o salvador da pátria exatamente como foi propalado na mídia. Com isso combateu-se o temido Lula nas eleições de 1989. Foi uma batalha assumida pela mídia e o grande empresariado nacional (ocasião em que se deu um grande impulso ao esquema de caixa 2 para financiar as campanhas). Se a imprensa fosse menos severina, poderia ao menos ter escolhido um candidato mais confiável e consistente para evitar a vitória do candidato que ela e a classe econômica que a controla temiam.

Deixando esses exemplos clássicos de lado, voltemo-nos para situações mais recentes. Depois de tanto receber tratamento desigual em relação a outros candidatos por parte da imprensa e de outros setores da sociedade em sucessivas campanhas, o ex-adversário de Collor chegou à presidência. Nem todos votaram nele por convicção política. Além dos que tinham convicção, parte votou porque achava que ele merecia uma chance depois de várias tentativas; parte porque não agüentava mais os que estavam no poder, e outra parte devido ao marketing político. Mas por isso não se pode dizer que a esperança depositada nele não era forte. Lula assumiu o poder como depositário desse simbolismo e todos reconhecem que o fato de um operário chegar à presidência da República é um passo notável numa democracia.

Virulência questionável

Ele assumiu o governo procurando ser conciliador, mas nem isso nem o simbolismo que o trouxe ao poder foram o bastante para evitar a acidez da grande imprensa contra ele e seu governo. Isso dava para saltar aos olhos de qualquer leitor ou espectador atento desde o começo do governo. Por exemplo, quando a política externa do governo Lula promoveu a cúpula dos países árabes e latino-americanos, a imprensa contrária ao governo taxou-a de idiotice completa, que apenas provocaria a ira dos Estados Unidos. No entanto, depois dela as exportações para tais países multiplicou-se em larga escala. Em edição do Bom Dia Brasil, da TV Globo, a jornalista Miriam Leitão dizia que o ‘governo bate no peito’ devido aos recordes de exportação, ‘mas quem exporta são os exportadores’, ou seja, na concepção que ela passa, o governo de um país não tem papel nenhum em agir para melhorar as exportações, isso se deve apenas aos empresários.

Se isso fosse verdade, os déficits na balança comercial que o Brasil sofreu no governo anterior seriam por quê? Será que os empresários não estavam querendo ganhar dinheiro? A Veja diz que a política externa do governo Lula é o maior fracasso diplomático do país, no entanto os números e os fatos dizem o contrário – trata-se do melhor desempenho em exportações do país em todos os tempos, em grande parte devido à política externa do governo, isso apenas para citar alguns poucos exemplos do que se vê de acidez e manipulações contra o atual governo diariamente na mídia.

Certamente as críticas são boas para fazer qualquer governo manter a linha e trabalhar para melhorar. O que é questionável é a virulência que chega a transformar fatos positivos em negativos ou a abafar os positivos e divulgar à exaustão os negativos. Tudo isso em contraste com a grande benevolência para com o governo anterior, não só durante todo o governo, mas ainda hoje, quando se enaltece tanto e se dá tanto espaço à figura de FHC mesmo quando 70% da população o rejeitam, segundo pesquisas de opinião. Certamente uma crítica equilibrada ao governo FHC, sem a virulência que se vê nas críticas ao governo Lula, teria contribuído para um melhor desempenho de seu governo, chamado a atenção para pontos fracos, alertando em relação a posturas erradas etc.

Vista grossa

E com isso o Brasil e o próprio FHC, seu partido e seus aliados e também a própria mídia teriam ganhado muito. A capacidade reflexiva dos donos do poder político, econômico e midiático, entretanto, não foi e não é capaz de enxergar isso. Um governo como o de FHC, tão hegemônico tanto no Congresso quanto na mídia, ‘deita-se em berço esplêndido’, esconde facilmente as mazelas, adia problemas, sente-se pouco instigado a melhorar, fica convencido de que não precisa fazer muito esforço para conquistar a população, crente de que a mídia sua aliada cuida disso. Mas em alguma hora todos esses problemas estouram, como de fato aconteceu, e com isso todos sofrem, o país, os mais pobres e até mesmo a própria mídia, até hoje muito endividada desde os tempos de FHC. Entretanto, falta sabedoria em tais donos do poder para perceber isso.

Com a crise política que estourou no meio do governo Lula, a forma desonesta com a qual a mídia o vinha tratando escancarou-se. Se antes já se transformava em negativo até o que houvesse de mais positivo, ou se retirava do governo qualquer mérito por resultados positivos, com a crise apoiada em erros do PT e em fragilidades do governo isso chegou às raias da insanidade, até o ponto em que criminosos condenados e presos, ao fazer qualquer denúncia sem provas, ganhavam imediatamente capas de revistas e primeiras páginas de jornais como portadores da mais absoluta verdade. Operou-se uma verdadeira caça às bruxas em relação ao PT e ao governo, sem contrapontos ou ponderações. Coisas muito mais problemáticas em tempos passados, como as privatizações, jamais tiveram tratamento igual, por isso muitos cientistas políticos chegaram a falar em ‘golpe branco’ contra o governo Lula, o que é uma tese bastante plausível.

A militância do PT jamais imaginaria que o partido viesse a utilizar caixa 2 em suas campanhas, mas daí à desfaçatez e ao cinismo com que a mídia cobriu o episódio, fazendo de conta que caixa 2 não é prática corrente no atual sistema político brasileiro, há uma diferença muito grande. A única novidade era que também o PT, que se definiu sempre como defensor de uma política diferente para o país, tenha cometido os mesmos erros de outros partidos, a saber, dos partidos que são aliados da mídia e têm o beneplácito da vista grossa desta para seus erros.

Desequilíbrio democrático

A intenção não é defender o governo Lula e o PT nem muito menos desmerecer o período de FHC, mas simplesmente dizer que há uma disparidade muito grande na cobertura que a mídia faz em relação aos dois governos e que isso não é bom para o país e para a evolução de sua democracia; é algo de índole coronelista e severina, uma antidemocracia.

Essa disparidade pode ser constatada numericamente comparando-se a cobertura no episódio da compra de votos para a reeleição de FHC em contraste com o episódio do suposto ‘mensalão’ (ainda não provado) do governo Lula. No primeiro, a grande imprensa abafou o quanto pôde, embora houvesse provas exatas; no segundo amplificou ao máximo, sem que houvesse provas que justificassem tamanha virulência. No caso de FHC a revista Veja passou 12 edições (enquanto durava o episódio) sem dar a cobertura merecida; já no episódio de Lula, ela não só alardeou como deu pelo menos umas 15 capas seguidas ao tema, em tom pesado, chegando a comparar Lula a Collor, sendo que a conjuntura política era completamente diferente à do período do presidente cassado (claramente dois pesos duas medidas). Talvez se os fatos ocorridos no tempo de FHC tivessem sido apurados, a tão sonhada e propalada reforma política já tivesse sido feita e o país não estivesse passando por essa nova crise que, entre as sucessivas crises políticas, já é algo rotineiro no país.

Igual disparidade de tratamento pela mídia acontece sistematicamente em todos os níveis de governo no país e em todas as campanhas eleitorais, em que se procura massacrar midiaticamente partidos, candidatos e governos identificados com causas de esquerda, com os movimentos sociais e que visam a uma melhor distribuição de renda no país; por outro lado, a mesma mídia enaltece os políticos mais identificados com os ideais da direita e a manutenção da ordem social vigente. Isso é totalmente semelhante, na verdade idêntico, ao coronelismo e provoca um forte desequilíbrio democrático e não contribui para o avanço do país.

Leitura crítica

O coronelismo e o severinismo político aliados aos seus pares midiáticos criam mecanismos para perpetuar a desigualdade social no país, formam uma simbiose que dificulta o aprimoramento político e a distribuição da renda nacional. Com isso, todos perdem, inclusive a própria mídia, que joga fora a possibilidade de formar novos leitores e espectadores entre os que hoje não têm condições financeiras de assinar revistas e jornais ou de comprar os produtos que a TV e o rádio anunciam, e poderiam fazê-lo se a renda do país fosse mais bem distribuída. A mídia perde também credibilidade subestimando a inteligência de seus usuários, pois o cidadão esclarecido, ao ver as manipulações grosseiras, fica com a impressão de que o acham incapaz de perceber esse jogo.

Se um dos fatores principais para o empobrecimento do Nordeste brasileiro é o coronelismo e os ‘políticos severinos’, o coronelismo e o severinismo midiático fazem o mesmo com o país inteiro: atravancam seu desenvolvimento. Se a mídia fizesse cobertura política mais imparcial, mais objetiva, balizada e aprofundada, com certeza contribuiria muito para termos um país mais desenvolvido e mais justo. Por enquanto, com raras exceções, não está à altura disso, não tem nível mais elevado do que os dos muitos maus políticos que ocupam o Congresso Nacional e o Poder Executivo. Tem preferido atender aos interesses escusos de determinadas linhas político-ideológicas aos interesses da nação. Falta espírito público à mídia e faltam políticas públicas para os meios de comunicação no país.

E mais: à menor tentativa de criação dessas políticas, os donos do poder midiático reagem ferozmente. Portanto, o país não precisa apenas de reforma política, precisa também de uma reforma da mídia, que não pode ficar concentrada nas mãos de tão poucos, formando um pensamento único e procurando eliminar dissidentes do jogo político. Da mesma forma que os coronéis do Nordeste mandam matar seus adversários. Enquanto essas reformas não vêm, é importante que as instituições sociais, em particular as escolas, procurem formar pessoas com capacidade de leitura crítica tanto da mídia quanto da política e da relação entre ambas.

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Jornalista, coordenador editorial de literatura infantil e juvenil na Editora Paulus, graduado em Filosofia no ISI-FAJE em Belo Horizonte, estudante de Teologia