Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Mídia, movimento estudantil e os recursos públicos

O lançamento do livro Direito à memória e à verdade pelo governo federal na última semana foi um passo importante para a construção de uma nova história sobre a ditadura militar brasileira. Fruto de 11 anos de trabalho de um grupo muito empenhado em trazer à tona o significado histórico da ditadura militar brasileira, só foi possível com o esforço de ex-militantes estudantis, anistiados políticos, familiares e entidades ligadas aos direitos humanos, que construíram um trabalho significativo sobre a história recente do país.


Nunca havia ficado tão emocionado, pois, como pesquisador do movimento estudantil, sei o quanto foi difícil ter acesso a documentos e entrevistar pessoas que foram perseguidas pela ditadura. No início de 2002, quando iniciei a primeira pesquisa, o tema ainda era considerado muito espinhoso, o que levavam as pessoas a preferirem o silêncio – e as instituições, a dificultarem o acesso a qualquer documento.


Mas, com a paciência, a partir daí pude entrevistar cerca de duas centenas de militantes estudantis ou mesmo ex-professores que vivenciaram o período negro da ditadura militar. O que me levou a viajar a estados como Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Paraíba, Sergipe, Goiás e Distrito Federal (Brasília). Também pude entrevistar por e-mail ex-estudantes brasileiros relacionados ao tema e que viviam em países como Estados Unidos, França, México e Suécia.


Livro e CDs


O principal, nos encontros com centenas de militantes estudantis, foi a troca de solidariedade e de cumplicidade para a reconstituição histórica do movimento estudantil brasileiro (MME). Sem a generosidade do pesquisador e dos atores nada seria possível.


Sei como era difícil àquelas pessoas falarem de episódios ocorridos há várias décadas, sobretudo assuntos que envolviam muita dor. Sei também que os depoentes também viam quanto era difícil ao pesquisador ter que trabalhar muitas horas para viajar e coletar um depoimento, consultar documentos e sistematizar minimamente os dados repassados. A luta do pesquisador poderia ser comparada à das histórias repassadas, pois em ambos os casos os comportamentos individuais deveriam ser pautados pela generosidade, pelo alto espírito público, pela humildade e o desapego ao dinheiro nas ações.


Mas o resultado de todo o esforço foi a publicação recente do livro Movimento estudantil brasileiro e a educação superior (Editora UFPE), organizado por Michel Zaidan Filho e por mim, assim como dois CDs que organizei: ‘Repúblicas de Ouro Preto e Mariana: trajetórias e importância’ e ’70 anos da UNE: O que já sabemos? O que precisamos saber?’. Ambos publicados pelo nosso projeto ‘A Engenharia Nacional, os Estudantes e a Educação Superior: A Memória Reabilitada (1930-85)’ (Proenge). Em novembro, ainda estaremos publicado o livro Juventude e Movimento Estudantil: Ontem e Hoje, que está sendo organizado por Luís Antônio Groppo, Michel Zaidan Filho e eu, assim como o CD ‘A contribuição dos Estudantes de Engenharia, a Questão das Profissões e a Educação Superior’, também organizado pelo Proenge.


Ofensivo ao contribuinte


O nosso Projeto já coletou mais de 300 entrevistas (contra 100 do MME) de ex-militantes estudantis brasileiros, além de obter mais de 10 mil cópias de documentos referentes ao movimento estudantil brasileiro. Boa parte desse material já foi ou está em processo de publicação.


Na mesma semana em que fiquei emocionado com o lançamento do livro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, fui tomado de surpresa ao ler o seguinte no site da Fundação da Rede Globo, a Fundação Roberto Marinho, que fez uma sociedade com a União Nacional de Estudantes (UNE) no chamado projeto ‘Memória do Movimento Estudantil’ (MME):


‘O maior conjunto de testemunhos sobre a militância estudantil brasileira reunido no país, organizado pelo projeto Memória do Movimento Estudantil, se transformou em dois filmes e um livro’ (ver aqui).


Tal afirmação é um desrespeito a quem tem feito um trabalho importante sobre a história do movimento estudantil brasileiro. E ofensivo ao contribuinte que paga seu imposto.


Apagamento de atores


A UNE, ao escolher a realização de vídeos sobre o movimento estudantil e fazer apenas cerca de cem entrevistas com algumas figuras que poderiam falar sobre a UNE – utilizando recursos públicos que já chegam a dois milhões e trezentos mil reais – acabou deixando de fora uma série de outros possíveis depoentes e atividades que seriam essenciais para o aprofundamento do resgate da história da UNE e do movimento estudantil brasileiro.


Neste caso, a parceria com a Rede Globo não abriria espaço mesmo para a realização de outros aspectos de pesquisa no projeto, assim como não permitiria gravar entrevistas com todos os ex-militantes importantes para a história do movimento estudantil brasileiro. Através do vídeo, também, como é natural, poucos se arriscariam a relatar questões fundamentais para a história do movimento estudantil, como é o caso do apoio da própria Rede Globo à ditadura militar.


Um outro agravante do projeto Memória do Movimento Estudantil é que, ao tratarem de episódios como a campanha O Petróleo é Nosso – o que se pode analisar nos principais textos produzidos pelo projeto (sobretudo no site www.une.org.br) – a sobrevalorização da UNE e o apagamento de outros atores importantes do evento no processo é muito visível, como é o caso dos diretórios acadêmicos e dos DCEs, que utilizaram os espaços das universidades para debater e protestar contra os que defendiam idéias anti-nacionalistas.


A credibilidade da UNE


A propaganda do projeto também apresenta a todo o momento tal episódio como o mais importante da UNE.


Neste caso, a presença do patrocínio da Petrobrás precisa ser bem apresentada por eles, embora forcem a barra ao tentar associar a todo momento UNE e Petrobrás. A expectativa da permanência de injeção de recursos da estatal eternamente na UNE levou a tal atitude. Infelizmente, o projeto MME não tem conseguido passar a credibilidade necessária ao se juntar a parceiros e realizadores com interesses e diferenças históricas insuperáveis.


Creio que o projeto MME busca ludibriar a opinião pública. Seria bom investigar se o silêncio da UNE em relação aos problemas políticos do governo federal estaria intimamente ligado aos milhões de reais que tem recebido dos cofres públicos. E, também, com relação aos milhões de reais já prometidos: até que ponto comprometem ou não a credibilidade da entidade. O que deveria ser alvo de atenção da mídia neste momento, pois compromete a própria democracia brasileira.

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Idealizador do projeto ‘A engenharia nacional, os estudantes e a educação superior: A memória reabilitada (1930-85)’