Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mídia tolera a violência nos estádios

A morte prematura de um torcedor boliviano de 14 anos em um jogo do Corinthians contra o San José, em Oruro, durante uma partida da Copa Libertadores (20/2), levantou o debate sobre segurança em grandes eventos esportivos. Kevin Beltrán Espada foi atingido no olho por um sinalizador náutico disparado por integrantes da torcida do clube brasileiro e morreu na hora. Doze torcedores corintianos foram presos ainda na Bolívia. Cinco dias depois, já em São Paulo, um menor de idade se apresentou voluntariamente à Vara da Infância e da Juventude e confessou ter disparado o rojão.

Para a polícia boliviana, o caso ainda não foi concluído. A participação dos 12 brasileiros detidos em Oruro continua sendo investigada. E muitas perguntas permanecem sem resposta: quem ajudou o menor a sair da Bolívia? Por que a confissão ocorreu somente no Brasil? Qual o envolvimento da direção do clube no caso? A família do jovem boliviano acredita que a confissão não passa de uma estratégia para encobrir os verdadeiros culpados. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira (5/3) discutiu a cobertura da mídia diante de crimes envolvendo torcidas organizadas e a segurança em eventos esportivos.

Alberto Dines recebeu três convidados no estúdio do Rio de Janeiro: o sociólogo Mauricio Murad e os jornalistas Jorge Luiz Rodrigues e Tim Vickery. Murad é pesquisador e professor de Sociologia dos Esportes. Autor de artigos científicos sobre violência e futebol, tema ao qual se dedica há mais de 20 anos, escreveu Para Entender a Violência no Futebol.Jorge Luiz Rodrigues é editor-assistente de “Esportes” e colunista do “Panorama Esportivo”, do jornal O Globo. Cobriu as últimas seis edições da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. Tim Vickery, inglês radicado no Brasil desde 1994, faz cobertura de futebol sul-americano para a BBC, a revista World Soccer, da Inglaterra, SBS, da Austrália e ESPN, dos Estados Unidos, entre outros.

Pelo fim das torcidas organizadas

Antes do debate no estúdio, em editorial, Dines defendeu que as torcidas organizadas sejam dissolvidas. Para ele, os clubes e a imprensa não têm coragem de exigir drásticas com medo de perder audiência. “Somos condescendentes com tudo que envolve o futebol – aceitamos a sua corrupção, somos complacentes com a sua violência, insensíveis à incúria e à irresponsabilidade dos dirigentes esportivos porque o Estado brasileiro permite a imunidade do Estado futebolístico, um Estado dentro de um Estado regido por outras leis e outra moral”, criticou Dines.

A reportagem exibida antes do debate ao vivo mostrou a iniciativa do canal ESPN Brasil, que provou a precária fiscalização nos estádios brasileiros. Poucos dias após a morte de Kevin, uma equipe da emissora conseguiu furar a segurança do Engenhão, em um jogo do Campeonato Carioca, e entrou no estádio com um sinalizador. O produtor Leandro Ferreira, que participou da reportagem, explicou como foi a abordagem do policial durante a entrada: “Ele só olhou. Tinha um casaco grosso por cima cobrindo tudo. Ele deu uma batida, nada muito efetivo. Não tinha detector de metais, ele não fez nenhuma pergunta. Nem perguntar ele perguntou se eu tinha alguma coisa de risco. Não pediu também para eu tirar nada da mochila, tudo que ele fez foi olhar mesmo e me liberou”.

O comportamento da torcida e dos jogadores é um reflexo da sociedade, na avaliação do jornalista Xico Sá: “Eu acho que o futebol é apenas uma parte da sociedade brasileira, com o espetáculo dentro da sociedade. Agora vivemos no estado de São Paulo um estado de guerra, de mortes diárias, assassinatos. Você não vai querer que isso reflita no ânimo da população nos estádios? As coisas estão muito ligadas. Não dá para ver o futebol apenas como espetáculo de 11 homens contra 11 homens, uma bola no meio e a torcida. Não, isso é o espetáculo da sociedade brasileira”.

Aprovado em 2003, o Estatuto do Torcedor prevê punições rigorosas quem põe em risco a segurança nos eventos esportivos, mas a aplicação do código é falha. “No papel é uma lindeza, é muito bonito. Ele reflete muito do Código do Consumidor, tem uma cartilha belíssima. Mas o cumprimento dele por parte dos clubes, das torcidas, eu acho que não tem sido real”, disse Sá. Para o jornalista, pontos básicos do texto não estão sendo respeitados.

A vizinha Argentina

O correspondente Ariel Palacios explicou que na Argentina os dados de mortes em estádios de futebol são alarmantes. A situação é agravada pela conivência de partidos políticos, que desde o período da ditadura militar trocam favores e empregam integrantes de torcidas organizadas. “A Justiça e os políticos protegem o que na Argentina se chama barrabravas, o que os ingleses chamam de hooligans e no Brasil se chama de torcidas organizadas”, disse o jornalista. Palacios comentou que o fenômeno se intensificou durante a redemocratização, quando o poder político civil passou a acobertar as torcidas organizadas. Nos últimos dez anos, durante os governos Kirchner, a situação piorou ainda mais.

O desembargador Siro Darlan, que foi juiz da Vara de Menores do Rio de Janeiro, classificou como lamentável a tentativa de transferir a culpa para um menor de idade. “Uma farsa que agride a inteligência mediana de qualquer pessoa. Utilizar-se desse jovem como protagonista de um ato tão grave, para aparentemente safar os verdadeiros responsáveis por esse ato criminoso, é irresponsabilidade. E, além disso, causa uma repercussão na opinião pública muito negativa sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. As pessoas ficam pensando que pelo fato de ser um adolescente nada acontecerá quando, na verdade, se esse fato tivesse ocorrido no Brasil e se esse jovem fosse o responsável, ele seria preso, processado pelo Ministério Público e poderia pegar uma medida de privação de liberdade de até 3 anos”. Para o desembargador, um clube como o Corinthians deveria impedir que o seu departamento jurídico agisse desta forma e a mídia poderia ter aprofundado a busca pelos responsáveis pela fraude.

No debate ao vivo, Mauricio Murad explicou que no Brasil, nos últimos vinte anos, houve pelo menos quatro casos com perfil semelhante ao ocorrido na Bolívia. O mais recente teve como palco um estádio em Belém do Pará, em 2007, quando uma criança de 11 anos morreu atingida por um rojão. “Não houve, em nenhuma dessas oportunidades antecedentes, uma ação efetiva do poder público”, criticou o sociólogo. Além de não coibir práticas de violência, o Estado não adotou campanhas de prevenção. Por conta da impunidade, de acordo com Murad, o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking de mortes nos estádios. Somente em 2012, foram 23 as mortes registradas, comprovadas e documentadas. E o mais grave: o número cresce de forma preocupante a cada ano.

“A violência do público ou de parte deste público tem que ser entendida dentro da violência que a precede, que é a violência pública, a violência histórica, cultural, política. E, infelizmente, nós temos um país com um lastro de violência muito intenso”, afirmou o sociólogo. Dines questionou o papel da mídia no espetáculo de massa, onde uma manchete mal elaborada inflama ainda mais um clima de tensão. “A mídia tem efeito ‘showrnalismo’, espetacularização, sensacionalismo barato, que é uma forma de coproduzir o hooliganismo, a delinquência dentro das torcidas”, disse Mauricio Murad. Um jornalismo analítico e interpretativo, que vá além da notícia em si e busque entender as causas dos fenômenos, inclusive a “estupidez humana” que toma conta da multidão em um estádio de futebol, poderia mudar este panorama.

Pouca investigação

Os desastres nos estádios, de acordo com a avaliação de Tim Vickery, exercem um fascínio sobre a população. O jornalista relembrou dois episódios marcantes. Em 1989, mais de 90 pessoas morreram durante uma confusão generalizada em um estádio na Inglaterra. Quatro anos antes, a onda de violência desencadeada pela torcida inglesa em um jogo disputado na Bélgica ocasionou morte de 39 torcedores. A falta de manutenção dos estádios e falhas no sistema de vendas de ingressos, que colocou as torcidas muito próximas, contribuíram para a tragédia. Além disso, a investigação promovida pela polícia revelou gravas problemas no sistema de segurança dos estádios.

No entanto, apenas a violência das torcidas foi enfatizada. Para Tim Vickery, somente a presença de um grande número de pessoas em um estádio já representa uma ameaça em potencial para a saúde dos participantes do evento. Outro dado a ser considerado é o que comportamento de um indivíduo inserido em uma multidão pode fugir de padrões convencionais. O jornalista relembrou que, naquela época, as massas populares eram encaradas como inimigos internos pelo governo inglês. “Era conveniente para a imprensa colocar a culpa somente na torcida. Ajudou a criar uma cultura onde a polícia só estava encarando a coisa como um problema de ordem pública e esquecendo a sua responsabilidade de colocar um sistema que garantisse a segurança daquelas pessoas”, disse Tim Vickery.

O futebol é uma linguagem universal que se fala com sotaques diferentes, na opinião do jornalista inglês. Uma grande parte do problema, tanto no Brasil quanto na Argentina, decorre de uma conjuntura política que faz com que os presidentes dos clubes montem gangues para apoiar a sua gestão. “É um câncer que cresceu de dentro. A gente vê isso claramente no futebol argentino. A experiência do futebol inglês foi totalmente diferente”, comentou Tim Vickery. Os clubes ingleses eram condenados por negligência, mas não adotavam práticas como fornecer ingressos para a torcida organizada.

A notícia além do oficial

Princípios básicos do jornalismo, como apuração rigorosa dos fatos, não podem ser negligenciados em coberturas esportivas. Tim Vickery comentou que a imprensa não deve cair na tentação de ser um porta-voz de correntes e torcer a verdade. O jornalista relembrou que após o massacre de 1989, parte da imprensa inglesa comprou a versão da polícia de que os torcedores haviam se comportado como animais. Um dos relatos oficiais endossados pelos jornais afirmava que torcedores teriam urinado nos mortos. “Quando você está sendo esmagado até a morte, urinar é uma ação involuntária. O [tabloide sensacionalista] The Sun comprou essa linha vergonhosa”, criticou Vickery.

Na visão de Jorge Luiz Rodrigues, a condescendência com a violência das torcidas é pior do que a impunidade. Em diversos estádios brasileiros, por exemplo, há contingentes policiais especialmente preparados para atuar nesses locais, mas eles acabam compactuando com as torcidas. O jornalista chamou a atenção para o papel dos presidentes dos clubes: “É propício para o dirigente fomentar o caos. O ingresso compra o apoio. A passagem, o ônibus alugado na clandestinidade para a torcida profissional organizada – eu gosto de usar esse termo porque ela ganha dinheiro para torcer para os seus clubes – é conveniente porque compra um apoio”. O jornalista relatou casos em torcedores negociaram com dirigentes entradas gratuitas em troca de não vaiar o time em campo.

“Nós estamos a dois anos do maior evento esportivo da Terra. Um evento que tem audiência global de 3 bilhões de pessoas, que é a Copa do Mundo. Imagina se nesse estado de coisas acontece algo dessa magnitude?”, alertou o jornalista. Com a experiência na cobertura de 12 megaeventos esportivos, Jorge Luiz Rodrigues confessou que, por receio de tumultos, só leva seus filhos de 6 e 15 anos aos estádios em jogos que não são decisivos. Mauricio Murad acrescentou que 78% do público deixaram de ir aos estádios por medo da violência.

Jorge Luiz Rodrigues contou que o jornal O Globo não endossou a confissão do menor corintiano. Minutos após a veiculação da entrevista do Fantástico,quando o garoto assumiu publicamente a culpa, o jornalista já desconfiava da veracidade do fato nas redes sociais. Rodrigues comentou que ainda há vários fatos que a imprensa precisa investigar. “Eu fico triste é que esse é mais um caso que poderia servir de exemplo para o Brasil. Uma grande lição”, ressaltou o jornalista.

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A violência entra em campo

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 674, exibido em 5/3/2013

A tragédia não aconteceu aqui, foi na vizinha Bolívia, o morto não é brasileiro, mas os responsáveis por sua morte são torcedores do Corinthians, que foram a Oruro assistir ao jogo da Copa Libertadores armados de um sinalizador. Queriam comemorar os gols do seu time e mataram um adolescente de 14 anos, Kevin Espada.

Torcidas organizadas são tropas de choque, não usam armas mas são militarizadas. As torcidas organizadas precisam ser dissolvidas e abolidas. Os clubes são responsáveis por estas gangues uniformizadas, mas a mídia não tem coragem de exigir drásticas punições porque não quer perder leitores, telespectadores, ouvintes. E enquanto o futebol não for enquadrado pelo Estado e os cartolas processados criminalmente, as tragédias continuarão ocorrendo.

Somos condescendentes com tudo que envolve o futebol – aceitamos a sua corrupção, somos complacentes com a sua violência, insensíveis à incúria e à irresponsabilidade dos dirigentes esportivos porque o Estado brasileiro permite a imunidade do Estado futebolístico, um Estado dentro de um Estado regido por outras leis e outra moral. Apenas o hino é igual.

A farsa de apresentar um menor de idade como responsável pela morte do jovem Kevin, e assim livrá-lo de punições adequadas e severas, não depõe apenas contra a torcida Gaviões da Fiel, depõe contra a hipocrisia de nosso modelo de sociedade e escancara uma violência entranhada que já não é mais possível esconder.

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A mídia na semana

>> A renúncia foi surpreendente, as explicações extraordinárias, a despedida, como nenhuma outra nestes quase 20 séculos. Num Vaticano onde nada acontecia, de repente instalou-se uma central do suspense e do imponderável onde tudo pode acontecer. A mídia-sabe-tudo está sendo obrigada diariamente a reconhecer que não sabe coisa alguma porque a Santa Sé, que já era um Estado fechado, tornou-se ainda mais secreto, depois do vazamento dos documentos no ano passado. Não adianta antecipar tendências para a escolha do novo pontífice, porque grande parte dos cardeais só agora está chegando a Roma. A expectativa de um papa brasileiro é enganosa, o clima de Copa do Mundo, é irresponsável. As mudanças que vão ocorrer em Roma, na Itália e no resto da Europa exigem um acompanhamento mais prudente e uma imprensa mais competente. Cobrir um conclave para a escolha de um papa não é a mesma coisa que cobrir a festa do Oscar.

>> O trono pontifício está vazio e do outro lado do Rio Tibre o governo italiano está acéfalo – as eleições da semana passada, além de não produzirem um vencedor, trouxeram um novo e perigoso ingrediente – o populismo palhaço. O cômico Beppe Grillo não é de esquerda, não é de direita, é contra os políticos e a política e, em última análise, é contra a democracia. Com uma crise econômica que se agrava a cada dia, o palhacismo de Grillo depois da escandalosa era Berlusconi revela que a Itália e os italianos ainda não entenderam como conseguiram inventar o fascismo e conviver ao longo de vinte anos com um facínora chamado Benito Mussolini.

>> Palavra mágica, adorada pela mídia, “superação” tornou-se sinônimo de heroísmo pessoal. Superar um câncer deixou de ser uma vitória da ciência ou da medicina, a mídia prefere atribuí-la aos dotes pessoais dos pacientes. E quando um caso de superação ocorre na esfera esportiva, a celebração do heroísmo chega ao delírio. Ninguém poderia imaginar que no intervalo de poucas semanas dois deuses da superação despencassem fragorosamente do pedestal: em janeiro passado, o americano Lance Armstrong, lenda do ciclismo mundial que venceu uma metástase e continuou o seu ciclo de sete vitórias na Tour de France, finalmente admitiu o uso de um sofisticado sistema de dopping.

>> Há duas semanas, o formidável atleta e para-atleta sul-africano Oscar Pistorius, diversas vezes campeão olímpico, que teve as pernas amputadas na infância, foi preso sob a acusação de ter premeditado o assassinato da namorada, apresentadora de TV, com quatro tiros. A mística da superação precisa ser repensada antes que a mídia perca o resto de credibilidade e ela própria se converta num ídolo caído.

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[Lilia Diniz é jornalista]