Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“Morrer assim, num dia assim, de sol assim”

Naturalmente, outro era o Brasil do longínquo 1970, em plena ditadura militar, vivendo entretanto uma exuberância cultural raramente vista nas décadas que se seguiram.


Os tormentosos, mas fabulosos anos 70 ficaram na História do Brasil, bem diferentes dos 80 e 90, duas décadas marcadas por “uma apagada e vil tristeza” que se espraiou sobretudo entre uma juventude que precisou primeiramente pensar em sobreviver e de quem foram roubados, junto com o emprego, quase todos os antigos sonhos.


Exatamente naquele ano que inaugurava a década, que pouco prometia, pois a anterior parecia ter mudado tudo, Toni Tornado vencia o V Festival Internacional da Canção com estes versos: “A gente corre na BR-3/ A gente morre na BR-3”.


Passados mais de 36 anos, não apenas o Brasil é outro, como o mundo arrastou os jovens em outros turbilhões. Ou, melhor dizendo, outros turbilhões levaram os jovens para outros mundos. E uma tríade sinistra veio marcar os que morrem, não mais na BR-3, mas nas ruas das megalópoles e metrópoles brasileiras.


Álcool e velocidade


Naquele começo de década, os letristas avisavam:




“Há um foguete/ Rasgando o céu, cruzando o espaço/ E um Jesus Cristo feito em aço/ Crucificado outra vez/ E a gente corre na BR-3/ E a gente morre na BR-3”.


Havia tragédias para a juventude, mas mesmo elas eram heróicas, se comparadas com o que o Ministério Público discerniu agora nas ondas de adolescentes que vêm morrendo nas cidades. O caso emblemático estava estampado em O Globo, 2ª edição, pág.10, na segunda-feira (11/9). O 11 de Setembro aqui no Brasil foi mais embaixo!


Que viu de tão grave o MP? Viu comunidades que, utilizando o Orkut, incentivam os motoristas a usarem bebidas alcoólicas. Os nomes de algumas comunidades: “Eu dou pau no carro”; “Eu bati de carro, sim, e daí?”; “Meu fígado é totalflex”; “Eu sei dirigir bêbado”, “Sou menor, mas adoro dirigir”. Uma das menores dessas comunidades tem mais de 8 mil participantes. Um dos membros da “Eu dou pau no carro, sim” confessa que levou seu Renault a 180km/h e pergunta sobre a velocidade já atingida por outros membros.


Quem levantou a lebre da terrível mistura entre álcool, velocidade e juventude foi o jornalista Ancelmo Góis em sua coluna de domingo (10/9) em O Globo. Ancelmo Góis tornou-se provavelmente a página mais lida do jornal por saber conciliar objetividade e temas pertinentes em notas lacônicas, entretanto recheadas de informações.


Batendo à porta


Que dirão para esses jovens que se comunicam alucinadamente pelo Orkut os antigos versos que seus pais ouviram?




“Há um sonho/ Viagem multicolorida/ Às vezes ponto de partida/ E às vezes porto de um talvez/ E a gente corre na BR-3/ E a gente morre na BR-3”.


Seus pais e avós ouviram a famosa canção até o fim:




“Há um crime/ No longo asfalto dessa estrada/ E uma notícia fabricada/ Pro novo herói de cada mês”.


Não há muito mais o que dizer depois da assustadora matéria de Daniel Engelbrecht (ajudado por Thaís Britto, Rafael Casado e William Helal), a não ser o seguinte: a classe média brasileira somente é tocada pelos problemas quando os atingidos são seus filhos!


Aquela generosa juventude dos anos 70, aterrorizada pelo caos urbano e pela má administração de megalópoles, metrópoles, médias e pequenas cidades nas duas décadas e meia perdidas, refugiou-se nas cavernas em que transformaram suas residências, guarnecidas por grades, cachorros ferozes e vigias apavorados, e pareceu entoar uma outra canção: “Tô nem aí”.


A classe média só “tá muito aí” quando os problemas mexem com ela, com seu bolso, quando a crise, seja econômica, política ou ética (como agora), bate à sua porta. Nem se pode dizer que é melhor prevenir do que remediar, pois ninguém pode remediar a morte!


Menos de 20


“A maior perda da vida é ter que enterrar o próprio filho”, exalou entre doído suspiro e lágrimas secas o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade no enterro de sua filha única, em 1987.


A revista Veja de 26 de agosto daquele ano resumiu assim o que houve:




“Em apenas doze dias, o poeta Carlos Drummond de Andrade esteve duas vezes no Cemitério São João Batista, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Na primeira, o poeta mineiro, de 84 anos, enterrou a pessoa que mais amava, a filha Maria Julieta, de 57, vítima de um câncer generalizado. (…) ‘Não tenho mais futuro, acabou tudo para mim’. Doze dias depois, o poeta morto [às 20h45 de 17 de agosto de 1987] percorreu a alameda, conduzido no caixão pelos seus três netos e amigos”.


Pois é, mas pelo menos a filha do poeta viveu 57 anos! Quase todos os adolescentes que morreram em acidentes de trânsito no Rio e em cidades vizinhas nos últimos dias tinham menos de vinte anos. Dois deles tinham entre 15 e 16 anos! Morreram na Lagoa, na BR-101, na BR-356 e em muitos outros lugares!

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br