Wednesday, 08 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Mulher e jovens, assuntos menores

Onde foram parar os pauteiros dos jornais? A pergunta ocorre ao ler duas pequenas notas publicadas em O Estado de S. Paulo no dia 4 de junho. As notas são: ‘Assédio sexual agora é crime mesmo sem subordinação’ e ‘STJ reconhece ‘ficar’ como indício de paternidade’. Dois assuntos que dizem respeito às mulheres mas que, mais do que isso, mostram uma evolução no comportamento da sociedade, tanto nas relações de trabalho como nas relações pessoais. Temas que chamam a atenção dos leitores e despertam perguntas que ficam sem resposta.

Na nota sobre assédio, ficamos sabendo que ‘de acordo com o processo, o empregado – que era auxiliar de pessoal – foi demitido em virtude do teor de e-mails que enviava a suas colegas’. Mais adiante, a notinha continua:

‘Para o juiz Sérgio Pinto Martins, relator do recurso em segunda instância, ‘não se pode compactuar com procedimentos como os do reclamante, que não tem educação e respeito com outras pessoas, especialmente por mulheres, mormente as casadas’’.

Registrado o assunto, a imprensa dá uma de Pilatos no Credo. E o pobre leitor, se quiser saber mais, vai ter que virar repórter e gastar seu precioso tempo por conta própria.

E basta digitar ‘assédio sexual’ em qualquer mecanismo de busca da internet para descobrir que, desde 15 de maio de 2001, a Lei nº 10.224 introduziu no Código Penal o crime de assédio sexual no Art. 216-A, com a seguinte definição:

‘Constranger alguém com intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função’.

Se a lei diz isso, como explicar a atitude dos juízes que, segundo o jornal, preferiram desrespeitar o texto legal, aceitando a alegação da empresa para demitir o funcionário por justa causa? Do ponto de vista puramente jornalístico, é suficiente dizer que os juízes inovaram a jurisprudência? Seria mais correto publicar o texto da lei e mostrar, com base em pesquisa ou mesmo em entrevistas com gente do ramo, que os juízes em questão podem ter se baseado na legislação de outros países. Alemanha e Áustria, por exemplo, consideram assédio todas as alusões sexistas praticadas no local de trabalho, não importa a posição do funcionário envolvido.

É claro que a função primeira da imprensa é informar. Mas, por informar, não se poderia entender o relato minimalista, que não discute o caso em si e, muito menos, as suas conseqüências. Se o funcionário foi punido por assédio sexual, suas vítimas não têm direito a qualquer compensação? Não podemos supor que foi apenas mais um caso em que a única beneficiada foi a empresa? E, se foi isso, não caberia à imprensa denunciar?

Na medida em que a imprensa se limita a registrar o fato, como se fosse uma curiosidade, está prestando um serviço ruim tanto às mulheres quanto a seus leitores. Se os leitores já conheciam a lei, vão achar que, a partir de agora, ninguém mais está livre de perder o emprego, e que o melhor mesmo é manter distância de colegas. Sim, porque embora o jornal não diga, a lei foi feita para proteger mulheres, mas as mulheres, em cargo de chefia, também podem ser processadas se cometerem assédio sexual com seus subordinados. Enfim, um pouco de esclarecimento não faria mal a ninguém. Muito menos ao jornalismo, no cumprimento de suas funções.

Registro do folclore

Faltou pauteiro também na segunda nota, a que fala da decisão do STJ sobre o pedido de reconhecimento de paternidade. Novamente a superficialidade levou a melhor. O grande destaque, nesta nota, foi o fato de o STJ ter adotado um termo da linguagem jovem para dar sua sentença:

‘O pedido de um menino de 7 anos fez com que os ministros da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deixassem o latim de lado e utilizassem uma expressão rotineiramente ouvida de adolescentes brasileiros: ‘ficar’. No linguajar jovem e com significado já previsto em dicionários, como o Houaiss da Língua Portuguesa, o verbo significa ‘manter com alguém convívio de algumas horas, sem compromisso de estabilidade ou fidelidade amorosa’.

Registrar que juízes estão falando uma língua mais jovem pode até ser divertido. Mas deixar passar a verdadeira notícia – a de que o sexo casual já é aceito como coisa normal – revela o despreparo da imprensa para discutir os assuntos que refletem novos comportamentos. Comportamento que deveria ser discutido com pais e mães de família, educadores e, no caso, com a juíza que deu a sentença favorável ao reconhecimento da paternidade. Tudo que ficamos sabendo foi que dois adolescentes tiveram, oito anos atrás, um relacionamento casual do qual nasceu um filho. Se o filho era desejado, se a mãe tem condições de manter a criança e por que se passaram tantos anos desde o nascimento até o reconhecimento do filho, isso fica por conta a imaginação dos leitores.

Se o jornal mantém um suplemento feminino e outro infantil é porque, entre seus leitores, há público para discutir assuntos que interessam às famílias. E essa pequena nota se revela uma excelente fonte de matérias, uma vez que contém verdadeiro resumo do comportamento dos jovens de hoje. E o jornal, em vez de aproveitar para esclarecer os leitores o verdadeiro significado dos termos usados pelos jovens – com suas conseqüências na vida prática – limita-se a registrar o folclore. Folclore que deixa de ser divertido quando o mesmo jornal é obrigado a publicar estatísticas oficiais sobre o crescente número de adolescentes grávidas no país.

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Jornalista