Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Mulheres, imprensa e poder

A eleição de Dilma Rousseff está fazendo muita gente acreditar que o Brasil não tem – ou pelo menos se livrou de vez disso – preconceito com relação a mulheres no poder. Há quem diga, até, que as mulheres só não ocupam mais cargos – no legislativo, judiciário ou executivo – porque não querem. Uma vitória parece ter sido suficiente para mudar toda a situação das mulheres brasileiras que, de um dia para outro, chegaram à igualdade total.

Mas será mesmo? Se é assim, por que só agora o assunto está sendo discutido? Por que só agora os jornais começam a discutir os resultados de eleições sem dar ênfase apenas às ‘musas’, ‘herdeiras’ e outros adjetivos tão comuns em eleições passadas?

A verdade é que a vitória de Dilma Rousseff (ou terá sido a vitória de Lula, como preferem alguns?) começa a ter um efeito benéfico sobre a pauta dos jornais com relação às mulheres. Em vez de falar da mais bonita ou da mais jovem, os jornais discutiram, na semana passada, a verdadeira situação das políticas ao exercer seu mandato. E, pela primeira vez, as entrevistadas deixaram de lado a mentira política de que o que interessa são os projetos (como faziam enquanto estavam no poder) e falaram com franqueza sobre os problemas que enfrentaram enquanto poderosas.

Os preconceitos enfrentados no poder foram o tema da matéria da Folha de S.Paulo (21/11/2010), ‘Pioneiras no Poder’:

‘ Maria Luiza Fontenele, eleita prefeita de Fortaleza em 1985, disse que durante a campanha sofreu com a pecha de `sapatão´, por ser divorciada. Luiza Erundina (hoje com 75 anos), eleita para a Prefeitura de São Paulo em 1988, relata preconceito por ser nordestina e do PT: `Uma vez, até recebi uma carta com vários xingamentos e com fezes dentro.´ A acriana Iolanda Fleming, 74, que assumiu o governo do Acre em 1968 (depois de ser vereadora e duas vezes deputada estadual), diz que enfrentou preconceitos desde o início da carreira. Lembra que resolveu estudar Direito quando entrou para a vida pública, aos 37 anos. Ouviu coisas do tipo `mulher que vai à faculdade é vagabunda´. Primeira senadora do país, Eunice Michiles, 81, diz ter vivenciado uma espécie de preconceito ao contrário, quando assumiu como suplente, em 1979, pela Arena. `Fui recebida com flores, poesia. Não deixa de ser discriminatório, porque ninguém era recebido assim. Não me sentia como uma colega.´ Roseana Sarney (reeleita aos 57 anos) se tornou a primeira governadora em 1994. Ela conta que, ao chegar nas primeiras reuniões de governadores de estado, a pergunta era sempre: `Como vai a família, marido, os filhos? Eles não estavam acostumados. Com o tempo, passaram a me respeitar mais´.’

Um pouco de memória histórica

Os efeitos desse preconceito são mostrados em outro artigo da Folha (também do dia 21/11/2010). Tereza Sacchet, do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP, diz:

‘Dilma Rousseff chega à posição de primeira mulher eleita presidente do Brasil chamando atenção para as desigualdades de gênero. Com a proposta de compor seu ministério com 30% de mulheres, colocando uma na chefia do Itamaraty, Dilma assume uma posição emblemática e aumenta expectativas de que seu governo terá um olhar diferente para essa forma de desigualdade, muito relacionada às demais. A iniciativa vem em boa hora. O último relatório da Igualdade de Gênero do Fórum Econômico Mundial colocou o Brasil na 85ª posição no ranking entre 135 países. A questão econômica contribui para tal resultado (as mulheres recebem 65% do rendimento dos homens), mas é na política que o Brasil tem um dos piores índices. Com apenas 8,9% de mulheres na Câmara dos deputados, o Brasil é o penúltimo país da América Latina quando o tema é a presença feminina no Legislativo federal. No ranking que mede o `empoderamento´ feminino na política, o Brasil ocupa a 112º posição.’

Mas talvez o artigo mais diferenciado seja o da filósofa Maria Sylvia Carvalho Franco, que, ao lembrar a história brasileira, mostrou que Dilma, embora seja a primeira presidente eleita, não será a primeira mulher a comandar os destinos do pais. Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo (21/11/2010), ela diz:

‘A eleição de Dilma Rousseff causou frisson geral. Como noticiou a TV, ela seria a primeira mulher a governar, a decidir os destino do país. Um pouco de memória histórica corrigiria essa tagarelice. E a princesa Isabel? A historiografia recente desfez o seu perfil de carolice e domesticidade. Culta, viveu num meio ilustrado, interessou-se pelo sufrágio feminino e pela educação pública para ambos os sexos… Apoiou os abolicionistas, promoveu fugas de escravos e os escondeu, financiou sua alforria e indenização, cogitou uma reforma agrária para integrá-los ao sistema social. Antes de Isabel, Leopoldina foi chefe de governo. Em meio à tensão entre brasileiros e portugueses, com ameaça de guerra civil e o príncipe em São Paulo, ao saber que Portugal agiria contra o Brasil, a regente convocou e assinou o decreto da Independência, depois referendado por Pedro I.’

Que a discussão se amplie

Ao analisar o discurso de vitória de Dilma Rousseff (‘Gostaria que os pais e mães das meninas pudessem olhar nos olhos delas e dizer: `Sim a mulher pode´’), a filósofa Maria Sylvia diz que a pretensão de Dilma a arquétipo feminino é impertinente. ‘Urge inverter sua fala: as meninas podem e devem mirar-se nos olhos de mães fortes e profícuas, para neles se espelharem… Que Dilma, espelhando-se nos olhos de suas antecessoras e de suas concidadãs, contribua para mudar de fato `este país´. Aliás, pouco importa o gênero: o necessário é um presidente responsável.’

O artigo da filósofa merece uma continuação. Seria interessante saber se as escolas, hoje em dia, já estão revelando o verdadeiro papel das princesas na história e de sua importância na política brasileira. Este debate, que está começando agora, traz uma boa notícia aos leitores: os jornais estão mais criativos, mais atentos à questão feminina e terão quatro anos para continuar debatendo a situação das mulheres. O que se espera é que a discussão se amplie e as necessidades da grande maioria das brasileiras – as mulheres pobres, as mulheres da periferia, as mulheres que criam os filhos sozinhas – também entre na pauta dos jornais e revistas.

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Jornalista