Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Na tela, nosso sistema de castas

O mundo de Renilda, a mulher de Marcos Valério, não é certamente o mundo de Sofia nem o mundo de uma brasileira como outras milhões neste país. Assisti na íntegra ao seu depoimento n terça-feira 26/7. Quem não assistiu perdeu uma verdadeira aula de sociologia, cujo teor deveria constar na tese de Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala.

Pena que a imprensa só se interessou pela sua afirmação de que José Dirceu estava numa tal reunião em Belo Horizonte com Marcos Valério. Por incrível que pareça, a imprensa parou por aí. Perdeu o melhor da festa. Isso é que dá só pensar em política.

No entanto, naquele dia intenso na CPI, por intermédio de Renilda, nosso sistema de castas no país foi escancarado de uma vez.

Butiques

O mundo de Renilda é representativo da nossa elite. Neste mundo, só contam o marido e os filhos. Talvez mais os amigos, e olhe lá! Imagine alguém conseguir falar durante um dia inteiro, até à noite, e não mencionar nada que não seja referente ao marido, aos filhos, sua casa, sua conta bancária, suas empresas, seus milhões.

A maior preocupação de Renilda é a quebra de seu sigilo bancário. Por sair na imprensa, caiu na boca do povo, ‘essa gente perigosa’, que está tendo acesso à informação dos milhões em sua conta, pondo em risco sua segurança e a de seus filhos. Isso é injusto, reclamou, enfática.

Depois de fazer um relato da atuação da filha no hipismo, do quanto a menina vem sendo bem sucedida, Renilda (quando um deputado levantou que era um esporte caro de ‘gente rica’) explicou que estavam enganados, que o primeiro cavalo da filha ‘só custou cinco mil reais’ e o que os 13 cavalos atuais não eram tão mais caros quanto os deputados estavam supondo.

Quando inquirida sobre a soma astronômica em sua conta bancária, explicou que os milhões são das empresas e que, na verdade, ‘só’ usa 60 mil reais para os gastos domésticos, correspondentes ao salário do marido nas empresas. E mais R$ 3.500 de pro-labore dela. Fiquei pasma, tentando imaginar como deve ser viver com 63.500 por mês. Ela explicou uma parte: são cinco mil só para as butiques.

Deferência

E deu como prova de que a família não está nadando em dinheiro o fato de que vem lutando com dificuldade ao longo dos 25 anos de convivência, e que está há quatro anos tentando acabar de construir a sua segunda casa. É um assombro! Se além dos milhões, 60 mil por mês não são suficientes, que casa é essa?

Renilda falou também do amor e da confiança que nutre por Marcos Valério, mantendo um casamento maravilhoso de 25 anos. E aí foi até engraçado ela dizer que não se lembrava do número do celular do marido.

O mais incrível foi a deferência e a delicadeza dos parlamentares com a ilustre depoente. Cada pergunta era antecedida de um pedido de desculpas dos nobres deputados. Um deles se atreveu a chamar a nobre senhora de ‘você’. Imediatamente levou um puxão de orelha do presidente da CPI, exigindo que Renilda fosse ‘senhora’. Quanta civilidade! Lembrei-me dos nossos ‘meliantes’: quando roubam uma galinha, se negam as acusações é cassetete na certa. Mas quem somos nós para igualar roubo de ‘meliante’ a roubo de representantes da nossa elite? Isso é querer aproximar demais a senzala da casa-grande. Não cheguemos a tanto.

Galhardia

No fim, houve um deputado, Júlio Redecker, que saiu da retórica e das adulações e lhe falou das crianças deste país que não têm o que seus filhos têm, se ela não pensava neles ao ser cúmplice do desvio de dinheiro público praticado por seu marido, dinheiro tirado da boca das crianças miseráveis.

Neste momento, Renilda chorou. Talvez, quem sabe, por um instante, tenha pensado nas crianças brasileiras que passam fome, que não têm serviço de saúde, escola, moradia, muito menos hipismo. Quem sabe, tudo é possível! Às vezes, no mundo de Renilda, cabe uma ligeira reflexão. Mas, se pensou nas crianças que não são seus filhos, o descuido passou logo, porque ela foi imediata e ardorosamente acudida pelo presidente da CPI, que, revoltado e emocionado com o choro da depoente, encerrou abruptamente a sessão, impedindo mais dois deputados de usar a fala, ao mesmo tempo em que fazia uma carícia nas mãos da acusada, como a dizer: ‘Fique tranqüila, tudo acabará bem.’ Como sabem, há muita solidariedade entre os iguais no mundo de Renilda.

O depoimento fez-me lembrar uma crônica de Arnaldo Jabor, ‘Buzunga caiu em depressão profunda’, que está no livro Sanduíches de realidade, e fiz, para finalizar, uma paráfrase:

Olha como a Sra. Renilda enfrenta os deputados com galhardia… Olha como as palavras lhe saem fluidas… Ouve o som da palavra… Ela disse que está com depressão, não sai do quarto há dias, fala da preocupação com os pobres filhos, sofrendo humilhação e correndo risco de seqüestro, que a menina foi entrevistada no torneio de hipismo e que o repórter lhe perguntou sobre seu pai, Marcos Valério… Como a menina vai sobreviver a tamanha humilhação?… Olha os gestos dignos… Chego a ver um tremor de orgulho nesta dor que ela ostenta sentir… Vejo nela uma volúpia por ser acusada, sabendo que sua classe a salvará, sabendo que os melhores advogados a esperam na ante-sala, sabendo que é doce sofrer num avião, chorar no aconchego do lar construído com milhões do povo. Ela sabe que está salva. É da tradicional família mineira… Sabe que faz parte de um mundo inatacável e logo será esquecida pelos jornais e absolvida pela justiça… Tudo vai se dissolver no ar em uma debandada de perfumes, como disse Rimbaud!

******

Professora