Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

‘Não’ à banalidade da crueldade e da indignação

Causou-me intensa inquietação, profunda revolta, quando abri as principais publicações nacionais neste final de semana (25/11/07). Na Folha de S. Paulo estava estampada a manchete sobre a adolescente estuprada e violentada numa cadeia pública, sob a permissão das lideranças estaduais do estado do Pará.

Como mulher e como cidadã, consciente e bem informada sobre os direitos universalmente garantidos ao ser humano pela Declaração dos Direitos Universais do Homem, não consegui ler toda a matéria no interior do jornal. Na página 2, em ‘Frases da Semana’, a governadora do Pará, Ana Júlia Carepa, afirma que esse fato ‘é lamentável’. Eu chorei. Penso que filho de ninguém merece sentir e viver tal abandono, mas não pude deixar de pensar se essa adolescente fosse filha da governadora e qual seria o sentimento e a atitude dessa mãe.

Na revista Veja, li a matéria sobre ‘como a polícia e a Justiça do Pará encarceraram uma menina de 15 anos numa cela com 30 homens’. Na mesma publicação, li a matéria ‘Herança Maldita’ e ‘Presente de Natal’ – a primeira fala sobre a podridão que sustenta as eleições parlamentares no Brasil, que dá guarida a conchavos políticos, à formação de quadrilhas lideradas por Eduardo Azeredo e Walfrido dos Mares Guia – e muitos, muitos outros – que a Justiça abafa e à qual dá tratamento diferenciado. Que justiça (com inicial minúscula – pensando bem, acho que vou inverter as iniciais) é essa que submete comuns e mortais a esse tipo de vida? Que, após ter garantido a conquista de votos, abandona um contingente cada dia maior de pessoas ao desamparo, à falta de tudo que é necessário para qualquer ser humano?

‘Vergonha de ser honesto’

Li também sobre os acordos costurados em Brasília para salvar Renan Calheiros, ressaltando, mais uma vez, que a política nacional transformou-se num espetáculo teatral dos mais vergonhosos. Esse senador não tem com o que se preocupar. Seu pescoço, assim como seu luxuoso conforto, já está salvo. Estão garantidas as suas fontes de renda; desculpe, renda é para nós, para ele são fontes de dinheirama, de poder político e corporativo – não podemos esquecer desse processo específico aberto contra ele pelo uso de laranjas na compra de empresas de comunicação.

Claro que os sentimentos que exponho não são de revolta pela mídia denunciar tudo isso. Excetuando o que penso dos conchavos que ela igualmente mantém com os donos do poder, denunciar é o papel dela. Embora esse papel não se esgote em informar. A educação também é seu dever. Como é, da mesma forma, informar, relatar a verdade e contribuir para a formação de consciências críticas e independentes.

Lembrei-me de Ruy Barbosa, que, ao discursar justamente no Senado Federal, confessou que ‘de tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto’.

Educar e formar

Não é vergonha o que sinto, nem mesmo de ser eleitora que insiste, a cada eleição, de votar no menos pior dos candidatos. Sei que não estou só, pois o sentimento de indignação é geral – excetuando aqueles que não têm respeitado o seu direito de estarem bem informados e, por isso, são privados dessa revolta; e aqueles que, de uma forma ou de outra, são beneficiados por ‘um trocado’ que, de um lado ou de outro, acaba por cair em suas mãos.

Não sei se a sociedade vai, um dia, deixar de lado o senso que nos ajuda a perceber o que é honesto do que não é; de identificar o limite da exploração, de ver glória em se aproveitar da adolescência ingênua e desprotegida. Mas a incredulidade não pode tomar conta de nós. Não podemos receber essas notícias e permitir a banalização da crueldade e da indignação. Claro está que não devemos também abrir espaço para o romantismo de acreditar que um dia a consciência dos parlamentares fale mais alto e eles percebam que estão onde estão para nos representar. Talvez por saber disso é que a sociedade está se organizando em fóruns pela democratização da comunicação/informação, em publicações alternativas que não se prendem a conglomerados que os viciem em dinheiro fácil, em entidades voltadas para educar e formar consciência de jovens e de terceira idade. Eu sei que a sociedade vai, um dia, reagir. Ela já começou.

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Jornalista