Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Nepotismo não rima com jornalismo

No domingo (4/9), o programa Estúdio Santa Catarina, veiculado pela RBS TV, trouxe uma boa reportagem sobre um brasileiro que está pesquisando segredos do universo junto à NASA, a agência espacial norte-americana. A matéria ficou centrada na figura de João Rodrigo Leão – que viveu durante muitos anos em Santa Catarina e que agora faz seu doutorado no exterior. Bem articulado e didático nas suas intervenções, o astrofísico preocupava-se (a cada pergunta) com os detalhes e a clareza da informação.

Fôssemos julgar pela história em si – um brasileiro que desde criança esteve com a cabeça na Lua e que agora investiga os mistérios do espaço nos Estados Unidos –, já valeria a pena fazer a matéria. Fôssemos julgar pela qualidade do conteúdo colhido nas falas da fonte, mais ainda.

Tudo ia bem na reportagem até o seu final. Não bastasse sua longa duração – mesmo para os padrões do programa dominical que é veiculado altas horas da noite –, um problema de ordem ética comprometeu todo o trabalho jornalístico. Quem assinava a matéria era a irmã do entrevistado: a jornalista Luciana Leão.

Em jornalismo, isso é um problema. E há razões para explicá-lo. O jornalismo é uma atividade que tenta organizar as informações cotidianas. Para isso, os jornalistas vão buscar dados com fontes diversas. Entretanto, para que se tenha um relato não-deslumbrado do fato, o jornalista tenta manter uma distância segura de sua fonte, de maneira que não contamine sua matéria com preferências pessoais, adesões ou filiações diversas.

Nesse sentido, tudo caminha para um esforço de isenção, de objetividade na narrativa jornalística. O que se quer passar é que a matéria foi feita atendendo a critérios diversos, seguindo os interesses públicos e não apenas particulares ou pessoais. Assim, a entrevista vai ao ar porque interessa à coletividade e não apenas aos parentes do repórter ou mesmo da pessoa ouvida.

‘Ação entre amigos’

É evidente que não existe uma objetividade total, uma isenção completa – afinal estamos tratando de seres humanos, de pessoas, e não robôs. Entretanto, nos esforços para que não haja partidarismo, ou privilégios de uma pessoa em detrimento de outras, busca-se uma relação mais crítica, mais cuidadosa com as fontes.

Costuma-se dizer nas redações a seguinte frase: ‘O jornalista deve estar próximo da fonte o suficiente para conseguir a informação e distante o necessário para não se misturar a ela’. O dito não é fácil de ser alcançado diariamente, mas daí a entrevistar o próprio irmão é muito diferente.

No exemplo que tomo por base – volto a dizer – a história vale a pena ser contada e a fonte é apropriada e deve ser ouvida. Entretanto, é a jornalista que não pode fazer aquela reportagem, já que é próxima demais da fonte, o que pode tornar a matéria uma ‘ação entre amigos’ e não algo jornalístico. O melhor teria sido repassar a pauta para outro profissional, o que garantiria a execução do trabalho sem esses riscos.

Bom senso e qualidade

Não se está discutindo se a reportagem foi bem produzida ou não. O problema não é técnico, mas ético. De conduta. A exemplo de outros profissionais, jornalistas regem suas condutas por valores, e o parentesco não pode influenciar nem ditar as atividades de um profissional na sua lida diária. É só olhar outros casos. Na classe médica, um cirurgião não pode operar um familiar. No Poder Judiciário, se chegar às mãos de um juiz um caso que envolva algum parente seu, ele deve se declarar impedido para a análise por conflitos de interesse. Ele sabe que não julgará a ação da mesma forma que o faria com um desconhecido.

Alguém pode pensar que me refiro a nepotismo, essa prática de beneficiar parentes. Mas penso que não se trata disso. Até porque esse conceito faz sentido apenas no setor público, onde as práticas devem ser transparentes e onde as oportunidades, iguais para todos. A disputa de um cargo público não pode priorizar laços sangüíneos – afinal estamos numa república e não numa monarquia.

Tecnicamente, o jornalismo não é um serviço público. Mas presta, sim, um serviço público na medida em que informa as pessoas, ajuda a gerar um senso crítico da realidade e interfere no cotidiano dos cidadãos. Em muitos momentos, o que se espera no jornalismo é que vigorem regras semelhantes às do poder público: a transparência, a eqüidade e o interesse público. Todas mediadas pelo bom senso e por uma constante preocupação com a qualidade do produto final.

Quando isso não ocorre, algo não cheira bem. Nem no poder público, nem no jornalismo.

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Jornalista