Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O amor está no ar

Na última quarta-feira (17/11), pré-disputa Brasil x Argentina, clássico dos clássicos do futebol mundial, o Jornal Nacional lançou mão da presença do vernáculo comentarista Galvão Bueno para tecer seus valiosos comentários sobre a disputa. Como um porta-voz do regozijo e da boa vontade da nova seleção brasileira, a ‘seleção de Mano’, as explanações se resumiram à exaltação do clima ‘leve e solto’ dos integrantes e onde ninguém mais faz ‘cara feia’. No Jornal da Globo do mesmo dia, lá estava Galvão mais uma vez, que tratou logo de arrebanhar as estrelas do novo time, entre eles Ronaldinho Gaúcho, ressurgido dos rincões como uma fênix sorridente para, novamente, exultar a atmosfera na qual ‘todo mundo dá risada o tempo inteiro’.

Mas o Brasil perdeu. Um a zero para a Argentina. A repercussão escandalosa, digna das manifestações mais arraigadas de desonra e indignação que tanto vimos durante a Copa do Mundo, desta vez não aconteceu. Serena e complacente, a reportagem de 1 minuto e 30 segundos exibida no JN, uma notinha, se comparada às exibições do dia anterior, não se preocupou em apontar culpados para a derrota – afinal, ‘desde que Mano Menezes assumiu, foram 360 minutos sem sofrer gols’, ou seja, os méritos são evidentes, como matematicamente salientou o repórter. O principal foi apregoar o resgate do ‘futebol bonito’, selado com a famigerada troca de camisas entre os capitães das duas seleções, tornando a derrota um mero detalhe.

Com a postura adotada no último amistoso disputado pela seleção brasileira de futebol em 2010, parece que se abre uma nova era da cobertura jornalística esportiva no país, pelo menos no que se refere à Rede Globo. Nesta era pós-Dunga, as notícias sobre a seleção voltaram a ter enredo, bossa e alegorias típicas das reportagens esportivas, que em nada lembram a linguagem bélica adotada durante a Copa do Mundo da África do Sul.

A maior feira de negócios sobre futebol

Aliás, cabe voltar um pouco no tempo (bem pouco, diga-se de passagem), para retomar a postura adotada pela mídia – pois, salvo raríssimas exceções, os demais meios não se diferenciaram do discurso ‘global’ e até mesmo o reproduziram – durante o Mundial de futebol realizado este ano. Lançando mão de uma carga expressiva e passional, muitos jornalistas, na maioria dos casos (se não em todos) deixou de lado a neutralidade que deveria nortear a apuração dos fatos e entrou de sola no conflito que, se é que existiu, deveriam apenas relatar.

‘Mas jornalista também é torcedor’, dirá o leitor mais desavisado. Contudo, o empenho da mídia, desta vez, parece não ter sido com a catarse do hexa que não veio. Havia algo além da simples constatação da iniquidade do técnico e do burocrático futebol jogado pela seleção de Dunga: a imperativa necessidade de resgatar a mágica e a poesia do futebol brasileiro. Aproveitando-se da atmosfera intimista típica de Copa do Mundo e de sua capacidade de insuflar e induzir emoções, a mídia esportiva não vacilou e elegeu Dunga e os dungaboys vilões de 2010, antes mesmo de o país ser eliminado da competição. Afinal, era preciso afiançar os futuros investimentos, conivências, oba-oba e afins que poderão envolver a feitura de um mundial como a Copa do Mundo, sobretudo no Brasil.

Hoje, após longos quatro meses da derrocada da seleção brasileira na Copa da África, a paz foi definitivamente selada entre futebol e mídia (leia-se Rede Globo). Com o ‘jeito moleque’ de jogar futebol resgatado na seleção brasileira por meio dos meninos meio jogadores meio bailarinos, o futebol brasileiro vive a bonança após um período de trovoadas, e recebe a Soccerex Global Convention, considerada maior feira de negócios sobre futebol que trouxe, mais uma vez, a taça do próximo mundial para terras tupiniquins, desta vez aos cuidados de outro patrocinador oficial, a Visa.

Uma escolha deliberada

Aos poucos, o terreno para a Copa de 2014 vai sendo arranjado e emerge nas pautas dos meios, mais por ocasião dos negócios que envolvem a competição do que por outros interesses menores, como por exemplo, a construção dos estádios. Assim, o tema que não foi incluído na agenda da mídia durante a última Copa e, por coincidência (ou não) foi pouco tematizado nos debates públicos, ressurge das mesmas cinzas que Ronaldinho Gaúcho e com a mesma pretensão: melhorar a imagem da seleção brasileira e torná-la, novamente, atrativa a investidores e patrocinadores.

De acordo com levantamento realizado pelo Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva da Universidade Federal de Santa Catarina (LaboMídia/UFSC), que analisou cerca de 50 edições de programas jornalísticos da Rede Globo, entre eles o JN, durante os amistosos oficiais e a Copa do Mundo, não houve uma incidência consistente de agendamento da futura Copa nesse período. A pesquisa, que tem como objetivo observar as estratégias de agendamento da Copa de 2014 na cobertura midiática da Copa da África do Sul em diversos meios, ainda se encontra em andamento, mas já deixa pistas do seu desfecho. Possivelmente ilustrará não só o comportamento da mídia antes e durante a Copa de 2010, como a possível conduta que ela poderá assumir nesse período pré-Copa de 2014.

Ao se considerar que a incidência de fatos e notícias veiculados pela mídia pode motivar a pauta do que será discutido pela própria sociedade, como pondera a hipótese da agenda setting, podemos inferir que o não-agendamento, ou seja, a pouca incidência da Copa de 2014 na pauta dos noticiários de maior penetração no país até os dias de hoje, possa ser uma escolha deliberada, um comportamento editorial que, ciente do poder que exerce na incitação da ação social, camufla tentando mostrar e mostra tentando esconder.

Mais informações sobre a pesquisa no site do Labomídia.

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Jornalista, publicitária e acadêmica em Educação Física, Florianópolis, SC