Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O catolicismo militante

Em artigo publicado no Correio Braziliense em 29/10/2010, intitulado ‘Ateísmo militante’, Frei Betto tenta se justificar por que em artigo anterior, para a Folha de S.Paulo, tratou os torturadores do regime militar como praticantes de um ‘ateísmo militante’. O novo artigo é uma tentativa de remediar a bobagem que falou antes. Mas é também uma profissão de fé, uma tentativa de provar que seu deus é grande, amoroso e justo, e que ele, esse deus, vai além das religiões.

Betto começa defendendo o direito à crença (e à ‘descrença’). Fala em tolerância. Diz que tem dificuldades em aceitar o fundamentalismo de qualquer espécie, inclusive dos ateus. E, finalmente, define ateísmo militante: ‘É o que se arvora no direito de apregoar que Jesus é um embuste ou Maomé um farsante.’

Em primeiro lugar temos que analisar, de um modo geral, o discurso da ‘igreja progressista’ (conforme as teorias de Fairclough), e não apenas o de Frei Betto. Os padres seguidores dessa linha católica dizem que ‘Deus é tão grande que aceita até os que não acreditam nele’. Ou que ‘Deus é maior que a igreja’… Temos aqui o típico discurso do poder. O ardil é colocar a alteridade como não-alteridade, aniquilar o crítico, submetê-lo ao poder – Deus é tão poderoso que ganha de você usando o amor. Você pode até odiá-lo, mas ele o ama. Ele é tão poderoso que se quisesse acabava com você, mas não vai fazer isso, embora você mereça, por ser ateu.

Deus não pode ser usado por todos

Já Foucault, ao tratar de poder, fala no ‘poder da disciplina’. Este se impõe através de regulamentos, normas, regras, vigilância e punição. Seu objetivo é fazer indivíduos dóceis, domesticados. E é esta a pretensão da igreja de Frei Betto. Não existem rebeldes na igreja – os fiéis se dobram à fala dos sacerdotes; são cordeirinhos mansos, ovelhas obedientes. Sim, isso vale para os evangélicos também. A fala do sacerdote é autoritária, única, inquestionável. Ninguém ousa questionar o padre ou o pastor evangélico durante o sermão.

Temos presente aqui também a fala da autoridade. Frei Betto não é qualquer um. Ele é um símbolo poderoso (Van Dijk). Ele um representante da igreja e, portanto, está investido de um poder terreno e cósmico – é um legítimo representante da elite espiritual e, em consequência, econômica. Ao falar, Betto se investe desse poder. A imprensa abre espaço para ele não por causa da qualidade dos seus textos, mas por causa desse poder. Um poder que o faz uma celebridade e lhe permite até escrever e vender romances. Do mesmo modo que Jô Soares também comete e vende suas literaturas. Se o poder de Jô Soares está na sua presença na TV, o de Frei Betto é pela investidura simbólica da batina e por sua luta em defesa de uma sociedade mais justa. O público de Jô Soares são todas as pessoas; o de Frei Betto, os militantes de esquerda ou os jovens sem causa, à procura de um pai ou de um padre. Ou de um Deus (vide Freud, Totem e tabu).

Mas quem é esse Deus de Frei Betto? Inicialmente, ele tem um caráter genérico, sendo dotado de infinita bondade. ‘Precede os batismos, defende o amor ao próximo, derrama-se graciosamente no coração de todos, crentes e ateus, bons e maus’, diz Betto. É um Deus bombril? Não, porque mesmo sendo genérico, não pode ser usado por todos. Esse Deus não é o mesmo dos torturadores, alerta Frei Betto. Ah, bom. Também não é o dos assaltantes, dos pedófilos, dos feitores ou dos ‘cardeais que louvam os donos do capital’. Mas ele não disse que Deus também se derrama graciosamente no coração dos maus?

A propaganda da fé católica

Na verdade, seria bom que os cristãos chegassem a um acordo. Porque se ‘todo mundo’ se diz crente em Deus é o caso de se definir de vez quem é esse deus. Porque muita gente acredita num Deus que serve para ganhar dinheiro, ou para justificar suas maldades, para arrumar marido, para ajudar nas compras do supermercado. O que me leva a considerar que cada cristão tem o seu. E aí seriam todos hereges, pois politeístas. Um pecado dos grandes. Afinal, esse deus deles colocou na Bíblia, como um mandamento, uma Lei: não adorarás a outro deus senão a mim. É uma fala arrogante, mas em se tratando do todo-poderoso…

Por via das dúvidas, desconfio desse deus de Frei Betto. Não levo a sério um Deus que ‘se aninha no ventre vazio da mendiga’, como diz ele. Seria muito mais prático e justo de alguém tão poderoso fazer um milagrezinho que a tirasse da miséria. Mas, o que fazer, se a Igreja Católica de Frei Betto vive da miséria e da dor, se é a igreja da infelicidade, do sofrimento, da purgação, da miséria? Não acredito num deus que se deixa morrer e muito menos num pai que deixa isso acontecer com o filho. Para mais detalhes, vide Reich, Nietzsche e Freud, entre outros.

Nos seus artigos, Frei Betto costuma cometer equívocos ao fazer a defesa da sua religião. Mesmo quando ele fala de política ou de pobreza, está sempre fazendo catequese. E a catequese, como tal, nada mais é que uma doutrina para imposição dos dogmas e normas da igreja católica (uma lavagem cerebral, como diziam os antigos marxistas). A catequese é a propaganda da fé católica. Por isso, neste artigo publicado no Correio Braziliense, ao tentar fazer a distinção entre ateus e crentes, Frei Betto apenas defendeu a sua fé. E, do mesmo modo como deu a entender que tem um Deus particular, também deu a entender que tem uma igreja católica particular. Deve ser outro tipo de pecado. Mas isso é problema dele.

O paraíso perdido

No texto do Correio Braziliense, em particular, Frei Betto considera intolerância alguém negar Jesus, tratá-lo como um embuste. Mas, e se depois de pesquisar na história, um estudioso chegar a essa conclusão? Estaria sendo intolerante? Na verdade, ao mesmo tempo que se diz contra o fundamentalismo, Frei Betto repele as críticas ou opiniões contrárias àquilo que considera sagrado. O outro pode tratar com ele sobre qualquer assunto, desde que não critique sua fé, ou seja, o poder da igreja. Já Frei Betto pode criticar Lula, Dilma, Serra, todo mundo. Mas a igreja é assim mesmo: ela se acha no direito de instituir normas e até impor leis ao país com base em sua moral, mas não admite questionamentos sobre suas práticas e sua fé. Já vimos do que é capaz esse poder quando se torna maior ainda…

Sob este ângulo, não há diferença entre o discurso ‘progressista’ de Frei Betto e o dos padres mofados que sustentam sua religião. Ou daqueles muçulmanos que se sentiram ofendidos com o livro de Salman Rushdie, Versos satânicos. Defende-se a fé, contra a razão e o saber. É uma postura medieval. E nos remete a Nietzsche: ‘O quanto de verdade um homem pode ouvir?’ Nietzsche também manda o recado aos cristãos, incluindo esses que têm um Deus particular: ‘Quem não pode mandar em si deve obedecer.’

O problema do discurso de Frei Betto (ou o do ecologista-comunista-católico Leonardo Boff) é que ele é sempre uma catequese. Tudo nele remete ao dogma. E por ser dogma, não aceita refutação – ele se impõe. Por isso não tem sentido falar em ‘filosofia cristã’. O dogma é aquilo que se impõe enquanto sacralidade (Mircea Eliade); rejeita as controvérsias, a dúvida (Popper).

O comunista-cristão (uma aberração transgênica gerada pela patologia da culpa) se explica como uma tentativa da igreja se manter no poder. Mas também como cria da ‘modernidade líquida’, enunciada pelo sociólogo Zygmunt Bauman. Quando tudo se desfaz, tenta-se resgatar o sagrado da vida, mantendo a utopia do paraíso perdido cristão. Espertamente, a igreja católica converteu esse paraíso que se foi numa utopia social. Na igreja ‘progressista’ de Frei Betto foi feita a adaptação aos novos tempos – o paraíso perdido bíblico se tornou o socialismo marxista.

Reprodução do velho discurso

No Manifesto comunista, escrito no final do século 19, Karl Marx e Friedrich Engels já tratavam do que hoje se entende como globalização. O texto fala em novos mercados, em produtos ‘que agora são necessários vindo de terras distantes’, de outras fronteiras. ‘Tudo que é sólido se desmancha no ar’, resumiu Marx. Mas ele também falou, em outros textos, do poder alienante das religiões. O que Marx não previu é que um dia a Igreja católica, muito ardilosamente, inventaria o ‘socialismo cristão’ e teria dentro da igreja sacerdotes ‘comunistas-cristãos’. Embora o florentino Maquiavel tenha previsto isso bem antes – tanto que escreveu O príncipe.

A alienação é própria da catequese. Quando Frei Betto trata de Jesus (e ele tem um particular também), não fala que a imagem cultuada nas igrejas é uma farsa, um embuste. Ele não diz que a imagem de Jesus e da ‘sagrada família’ foi montada na Idade Média quando a Igreja Católica achou por bem construir uma iconografia de seus santos com faces europeias. Essas imagens são embustes. Se Jesus e seus discípulos são daquela região do Oriente teriam mais a cara de Osama bin Laden do que de Tom Cruise, como se vê hoje. Usando o photoshop da época (Giotto, Da Vinci, Boticelli, entre outros) fizeram uma sagrada família nascida na Europa. Uma mentira que esses padres aceitam e mantêm até hoje. Será que afirmar isso é ‘ateísmo militante’, como nomeou Frei Betto?

Também será ‘ateísmo militante’ revelar os muitos e execráveis crimes de deus, como fez Saramago em seu último livro, Caim? Ou criticar a igreja por colaborar ativamente na matança dos índios em toda América latina e Caribe? Ou revelar que a igreja Católica é dona de um latifúndio da comunicação, nas dimensões da família Marinho, Frias, Saad, Sirotsky, Abravanel? Ou criticar seu patrão, o papa Bento 16, por proteger pedófilos? Ou revelar que ela é dona de uma grande rede de colégios para atender à elite deste país? Ou controlar rádios comunitárias, quando a lei e a decência proíbem? Ou informar que a igreja, para evitar que sua riqueza seja distribuída com a família (usura é pecado?), proíbe os padres de casarem e terem filhos? Ou a gente criticar a Igreja Católica por ter humilhado o governo Lula, obrigando-o a mudar a terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3) porque tirava alguns dos seus (muitos) privilégios dentro do Estado?

Enfim, Frei Betto não traz nada de novo em seu texto. Ele apenas reproduz o velho discurso cristão de que a culpa do males do mundo é a falta de Jesus. Iguala-se a Datena, célebre apresentador do ‘mundo cão’ na TV, que disse a mesma coisa. Iguala-se aos neopentecostalistas, que dizem que só Jesus salva. Pior, junta-se à turma de hábitos medievais que quer fazer este país voltar à Idade Média e obrigar todos a cultuarem o deus cristão, com sua moral e suas normas. Como ele é uma celebridade e representa o imenso poder católico, não lhe faltarão espaços na mídia para continuar fazendo catequeses.

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Jornalista, mestrando em comunicação pela UnB, autor de A arte de pensar e fazer rádios comunitárias