Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O condicionamento do jornalismo feminino

Se 68% das mulheres dizem que a culpa por alguma insatisfação com a própria imagem se deve à mídia e às revistas femininas em geral, por priorizarem entrevistas e fotos com celebridades, modelos e outras mulheres voltadas ao culto da aparência, então podemos concluir mais uma vez, só para exercitar, que a mídia focada no público feminino está voltada para anunciantes prioritariamente.

E o que querem os anunciantes?

Mais do que vender produtos, como cremes, tintas para cabelo, roupas, acessórios e perfumes, eles vendem atitudes subliminares, como a de provocar as normais para que invistam tudo o que podem para ser um pouco como as celebridades.

O fantástico é que funciona com a maioria das mulheres que podem comprar revistas e seus divulgados cremes, roupas, acessórios, perfumes e, não esqueçamos, as cirurgias plásticas, as lipoaspirações e as injeções de inchar boca, que prometem devolver o rosto lisinho dos 30 às que já completaram 50 e naturalmente exibem rugas ao redor dos lábios.

Sempre a reboque

Os públicos – mulheres normais e mulheres-celebridade – se misturam e existem mulheres-celebridade que pretendem continuar normais, envelhecendo e interpretando papéis de mulheres mais velhas, por exemplo, assim como existem mulheres normais que vivem como se existisse uma câmera na sala-de-estar de suas casas.

Em determinada altura desse campeonato de gorduras localizadas, academias que vão de vento em popa, clínicas de cirurgia plástica que faturam milhões e indústria de alimentos direcionada quase que maciçamente a produtos light e diet, perdemos a pergunta: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?

A mídia feminina atua com o sinal trocado, talvez nunca tenha representado a atualidade, puxando da sociedade feminina as questões emergentes, a fim de tratá-las de maneira multilateral; esteve sempre fabricando e ditando conceitos e preconceitos pré-fabricados por poderes maiores.

Remendando, esticando

É verdade que piorou muito, mas banalizar questões fundamentais, nivelar os leitores por baixo e atender a perversidades geradoras de lucros imediatos sempre foi o jeitinho brasileiro de fazer jornalismo.

Na década de 1970 as revistas femininas atendiam ao mercado dos leites artificiais para bebês, chamando atenção para a riqueza em cálcio e gordura do leite de vaca, maior do que a do leite humano. Naturalmente se pautavam, já naquela época, por assessorias de imprensa dos fabricantes de leite. As mulheres foram aconselhadas a desmamar, tiveram seu leite desqualificado e em duas décadas tornaram-se praticamente incapazes de amamentar porque a campanha midiática exerce um poder cultural fortíssimo, desfazendo rapidamente um conhecimento milenar que garantiu a sobrevivência de nossa espécie. Isto é grave.

Os problemas com a capacidade de amamentar das humanas chegaram a um ponto que hoje as revistas femininas gastam páginas e páginas com aconselhamento sobre amamentação, que vão desde intensas complicações com a limpeza dos mamilos – dependendo do grau de obsessão da editora – até dicas de como segurar o bebê, o que fazer, o que sentir, o que cantar. O pior é que isso, do ponto de vista do desenvolvimento feminino, não significa um bom remendo em hipótese alguma. A chafurdação na ignorância impera e os mimos todos chegam acoplados à idéia de que tudo na vida feminina pode ser resolvido com objetos, compras e a mais moderna das armadilhas: a promessa de que as mulheres podem fugir da maturidade, sabotando o funcionamento de hormônios, remendando, esticando, injetando.

Condicionamento e massacre

Isto não é um opinionismo; a verdade é que não há revista feminina no Brasil que banque as questões que ficaram para trás, como a fabricação de uma massa gigantesca de mulheres que tiveram sua feminilidade dilacerada por uma mídia interesseira, do mesmo jeito que não há publicação ou programa de TV que questione o comportamento único atual. Não se trata de ser contra ou a favor de cirurgia plástica, como tanto perguntam as repórteres das revistas da Globo, da Abril e da Símbolo, as três editoras que dominam o mercado. Trata-se de uma necessidade urgente de verificarmos a colheita cultural a que temos direito e o que faremos com ela.

Uma celebridade talvez tenha muito a contar numa entrevista e é interessante saber o que pensa uma atriz que tem em cartaz um filme em evidência, do mesmo jeito que seria instigante saber o que pensa a dentista que está trabalhando na descoberta da vacina anticárie. O pensamento único da nossa mídia, infelizmente, só nos leva a avistar capas de revistas que falam da vida pessoal dos artistas e, se queremos saber do trabalho artístico por trás do filme, acabamos presos em superficialidades do tipo truques que ela usou para emagrecer e outras baboseiras. Infelizmente, a mídia que estreita a realidade da mulher ultrapassa as revistas para mulheres, invade a área econômica e política das semanais e dos grandes jornalões, somando às perdas novas desvalorizações.

Na Folha de S.Paulo de domingo (10/10), Eliane Cantanhêde exemplificou bem esse condicionamento a que estamos submetidas. Numa matéria de atualidade eleitoral, a ‘surpresa’ petista das eleições em Fortaleza, a jornalista e professora da Universidade Federal do Ceará Luizianne Lins, foi massacrada pelo texto de Eliane Cantanhêde.

Perda geral

Só faltando chamar a candidata de loura burra, a jornalista gastou 50% de suas palavras com o jeito da moça, suas vaidades e outros costumes, como o de carregar um kit maquilagem e um kit escritório. E, sem dar exemplos, criticou o programa da candidata, comparando-o a um caderno escolar. A colunista foi sempre categórica na hora de criticar a inexperiência administrativa de Luizianne Lins, de 35 anos, e a cada argumento voltava com a questão da vaidade, utilizando as aspas da candidata em frases como: ‘Estou parecendo uma leoa’!

Ficou a dúvida (sempre fica a dúvida) se o que está por trás dessa matéria é algum tipo de conchavo político para favorecer o outro candidato à Prefeitura de Fortaleza ou se foi mesmo só uma pontinha de má vontade da repórter aliada a um condicionamento na forma de fazer jornalismo.

De qualquer maneira, o universo feminino saiu perdendo.

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Jornalista