Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O contrabando estatístico do Ministério da Justiça

Se você acaba de ver mais uma notícia sobre mortos por balas perdidas nas favelas cariocas e ainda não se refez das imagens do helicóptero da polícia pegando fogo no Morro dos Macacos e do presunto humano num carrinho de supermercado, tranqüilize-se: tudo isso não passa de um delírio, fruto da perigosa mistura entre o sensacionalismo da imprensa e sua fértil imaginação. Saiba que Teresina, a capital do Piauí, é muito mais violenta do que o Rio de Janeiro. Seu índice de vulnerabilidade juvenil à violência é 0,451 (alto) contra 0,429 (médio) da capital carioca. A constatação é de ampla pesquisa sobre violência e juventude, coordenada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sob o patrocínio do Ministério da Justiça.

Realizada nas 266 cidades brasileiras com mais de 100 mil habitantes, a pesquisa provocou manchetes nos jornais e o enfoque de todas elas foi praticamente o mesmo: Rio de Janeiro e São Paulo – ‘ao contrário do que acredita o senso comum’, frisa a maioria das reportagens – não estão entre as cidades mais violentas do país. De acordo com a pesquisa, o Rio de Janeiro do Comando Vermelho está em 64º lugar no ranking das cidades mais violentas para os jovens e a São Paulo do PCC ficou em 192º lugar. O município mais violento é Itabuna, na Bahia, e o menos violento é São Carlos, em São Paulo.

Ao divulgar os resultados da pesquisa, o ministro da Justiça, Tarso Genro, afirmou: ‘A pesquisa derruba determinados mitos, como, por exemplo, o de que a situação mais vulnerável é a do Rio de Janeiro. A gente tem essa impressão, mas não é’. Repetida em vários jornais, a declaração consta de reportagem da Agência Brasil (24/11/2009), órgão de imprensa do governo federal. Uma autoridade não tem o direito de vilipendiar as vítimas cotidianas da criminalidade no Rio, chamando de ‘mito’ o sangue que jorra dos morros e inunda o asfalto. Tivesse o Brasil um mínimo de decência e essa afirmação de Tarso Genro poderia custar-lhe, no mínimo, um pedido de desculpas.

Texto infanto-juvenil

Uma pesquisa científica, quando feita com seriedade, não é capaz de derrubar nenhum mito da noite para o dia. Antes de saírem alardeando supostas verdades para ganhar manchetes na imprensa, seus autores deveriam esperar que estudos independentes confirmassem seus supostos achados. É lamentável que a imprensa não tenha percebido isso e, na pressa costumeira, tenha-se deixado levar pelas inconseqüências do ministro — corroboradas por uma equipe de 55 pesquisadores, envolvendo várias instituições de prestígio.

Sem dúvida, os recursos humanos e técnicos mobilizados pela pesquisa impressionam. Mais impressionantes, todavia, são as fragilidades que transparecem em sua execução, levando em conta que não lhe faltaram recursos materiais e humanos. Em suas 220 páginas, a íntegra da pesquisa (divulgada no sítio do Fórum Brasileiro de Segurança Pública) traz uma profusão de números e quase nenhum comentário. Nem mesmo o Banco Central é tão parcimonioso em palavras quando apresenta seus dados. Os autores da pesquisa usam os números como trincheiras, provavelmente tentando proteger-se das críticas com a impressão que eles causam.

A pesquisa divide os jovens pesquisados em dois grandes grupos: ‘sem exposição e história de violência’ e ‘com alguma exposição ou história de violência’. Segundo os pesquisadores, isso foi feito para facilitar a interpretação dos dados e a reclassificação nos dois grupos finais se deu a partir de seis grupos. Chegam a escrever ‘estes seis grupos’, como se apontassem o dedo para uma informação que acabara de ser dada; entretanto, em nenhum outro lugar são mencionados os tais ‘seis grupos’ e, no parágrafo imediatamente anterior, o texto fala em ‘2 a 15 grupos’ formados.

O livreto digital da pesquisa é um sintoma de seu conteúdo. O verde e amarelo usado na arte final denota o caráter mais político do que científico do estudo. Já o texto rarefeito (apenas nove páginas em 219, sete delas com dois curtíssimos parágrafos cada) nada explica e ainda mistura linguagem juvenil e hermetismo técnico, sem que haja um meio-termo entre esses extremos igualmente equivocados. Exemplo: ‘Mas o que essas características têm a ver com a violência?’, indaga o título de um capítulo, sem o conseqüente texto respondendo à pergunta.

Irresponsável caldeirão etário

A maior fragilidade da pesquisa é a própria faixa etária pesquisada – ‘jovens com idade entre 12 e 29 anos’. Esse critério obedece às diretrizes da Conferência Nacional da Juventude, convocada pelo presidente Lula em 2007. Na verdade, deveria chamar-se Conferência Nacional de Lunáticos, pois suas reivindicações, se postas em prática, escravizariam todo o resto da população brasileira, que, mesmo mourejando de sol a sol, não conseguiria atender os desejos juvenis de marmanjos desocupados que se auto-intitulam ‘jovens’.

Para se ter uma idéia, a conferência se intromete até na questão da terra e reivindica que, na política de reforma agrária, se dê prioridade aos jovens de 16 a 32 anos (pasmem com esse conceito cada vez mais elástico de juventude!) – independente de seu estado civil. Ou seja, esses consumidores de recursos públicos desprezam critérios universais de acesso à terra para reivindicar que adolescentes de 16 anos expropriem a preferência que deveria ser dada a um pai de família de meia idade e filhos por criar.

Não é travestindo em ciência essa grita inconseqüente de desocupados que se vai resolver o problema da violência e criminalidade no país. Mais uma vez, o pensamento técnico-científico brasileiro sucumbe à ditadura dos jovens, repetindo o erro das pesquisas sobre desemprego. Nessas pesquisas, o IBGE joga os adultos num difuso caldeirão etário que vai dos 25 aos 49 anos (exatamente a fase de impactantes mudanças sociais e econômicas na vida de um adulto) e acaba superestimando o desemprego entre os jovens, cuja empregabilidade é analisada com lupa em três faixas etárias (10 a 14, 15 a 17 e 18 a 24 anos). Uma aberração metodológica, pois uma divisão etária tão meticulosa só seria justificável numa pesquisa sobre a sexualidade juvenil.

Assim como o IBGE força a ciência estatística a encontrar mais desemprego entre os jovens, a pesquisa do Ministério da Justiça tortura o bom senso para reforçar aquele fastidioso lamento de que ‘os nossos jovens estão morrendo, vítimas da violência’. Contrariando a maioria dos estudos do gênero, que limita a categoria ‘jovem’ à idade de 24 anos, a pesquisa resolveu estender a juventude em mais cinco anos. Sem dúvida, para reforçar a tese de que os jovens são as principais vítimas da violência no país. É como se isso não fosse a norma em qualquer cultura, tempo e lugar, pela simples razão de que os jovens também são os principais autores da violência em todas essas três dimensões da história humana.

Num dos escassos textos de apresentação da pesquisa, seus autores afirmam: ‘O desafio, no entanto, é aprofundar o conhecimento em torno de como a violência afeta a vida desse segmento da população brasileira’. Que segmento? O caldeirão etário que mistura, irresponsavelmente, crianças de 12 anos com adultos de 29 anos? Adultos dessa idade podem ser pais de uma criança de 12 anos; logo, suas percepções de mundo e responsabilidades sociais são completamente distintas e eles jamais poderiam figurar juntos numa pesquisa. Sobretudo num estudo sobre violência, cujos aspectos jurídicos, como a maioridade penal, são determinantes para a ação de indivíduos e instituições.

Pesquisa cria epidemia de estupros

Ao coletar ‘narrativas de violência’ em 31 municípios selecionados, a pesquisa dividiu os ‘jovens’ por estado civil: ‘casado ou unido’; ‘separado’; ‘viúvo’ ou ‘solteiro’. Deve ter sido engraçado o pesquisador perguntando para uma criança de 12 anos: ‘Você é casado, separado, viúvo ou solteiro?’ Como a pesquisa misturou indevidamente crianças e adultos, a pergunta essencial, nesse caso, não foi feita: ‘Você já namora?’ O namoro nessa idade – dependendo do modo como se desenvolve: com ou sem o consentimento dos pais – tem implicações diretas na segurança do adolescente, que, em função dele, pode ficar mais ou menos exposto a situações de risco. Só aí já se percebe uma falha gritante da pesquisa.

A pesquisa também perguntou a todos, inclusive às crianças: ‘Nos últimos seis meses quantas vezes você chegou em casa depois das 4 horas da manhã?’ Por que não ‘de madrugada’? Em termos de segurança, faz diferença chegar em casa às 4 horas e não às 3h30? O contrário também ocorreu, e perguntas próprias para crianças ou mulheres foram feitas para adultos masculinos. Uma delas: ‘Nos últimos 12 meses alguém em casa amedrontou ou perseguiu você?’ Obviamente, um homem adulto tende a achar a pergunta ridícula, enquanto uma criança de 12 anos pode confundir ‘perseguição’ com ‘implicância’, transformando a insistência de sua mãe ou de um irmão para que ele largue o videogame num problema de segurança pública.

Os entrevistados também tiveram de responder à seguinte questão: ‘Nos últimos 12 meses você viu pessoas sendo atacadas sexualmente?’. É incrível, mas 1,7% das pessoas ouvidas responderam ‘sempre’ e 7,1% disseram ‘algumas vezes’. Ou seja, 8,8% dos entrevistados brincaram com o pesquisador ou confundiram ataque com assédio. Um bêbado que deixa a calça cair na rua ou um doente mental andando nu não são ataques sexuais. Ataque sexual é estupro, tentativa de estupro ou atentado violento ao pudor, crimes cuja única testemunha costuma ser a própria vítima, logo, não é possível que sejam vistos ‘sempre’ ou ‘algumas vezes’ por um percentual expressivo de entrevistados e, ainda por cima, apenas no seu último ano de vida.

Perguntas insanas, respostas idem

Mas as perguntas absurdas não param aí. A exemplo dos ataques sexuais, os homicídios também são tratados pela pesquisa como atos corriqueiros, tão corriqueiros que se procura medir sua ocorrência apenas nos ‘últimos 12 meses’, como se faz em pesquisa sobre uso de drogas. A pesquisa quis saber dos entrevistados: ‘Nos últimos 12 meses, você viu pessoas sendo mortas por armas de fogo?’ Provavelmente, as crianças e adolescentes ouvidos confundiram filmes de Rambo com realidade, pois 18,8% dos entrevistados responderam ‘algumas vezes’ e 4,9% disseram ‘sempre’. Só moradores dos morros cariocas talvez testemunhem tanto homicídio assim em apenas um ano, em que pese o estudo dizer que o Rio de Janeiro não é violento.

Aliás, os próprios autores da pesquisa não conseguem discernir realidade de fantasia. Uma das perguntas parece ter saído da imaginação de uma criança de cinco anos e coloca em xeque não apenas a credibilidade do estudo, mas a própria sanidade mental de seus autores. É incrível como 55 cérebros funcionando juntos não foram capazes de perceber o completo delírio desta pergunta: ‘Nos últimos 12 meses, alguém em casa esfaqueou ou atirou em você?’. Ora, ser esfaqueado ou atirado e permanecer vivo para contar a história é um fato tão pouco comum que mesmo uma pergunta do gênero feita para Marcola ou Beira-Mar dispensaria delimitações de tempo.

Entretanto, os pesquisadores estavam tão convictos de que levar tiro ou facada e sobreviver é um ato banal que não se contentaram em delimitá-lo no tempo (somente ‘nos últimos 12 meses’) – também o delimitaram quanto a seus agentes (apenas ‘alguém em casa’). E entre as alternativas de resposta ofereceram: ‘algumas vezes’ e ‘muitas vezes’. Provavelmente para zombar dos pesquisadores, 3,9% dos entrevistados juraram ter sete vidas ao responder ‘muitas vezes’.

A falta de seriedade dessa resposta é evidente. Basta notar que apenas 0,8% dos entrevistados disseram ter sido ameaçados ou amedrontados ‘muitas vezes’ fora de casa – possibilidade, sem dúvida, muito mais provável do que ser atirado ou esfaqueado dentro de casa ‘muitas vezes’, num só ano, e ainda poder contar a história para o Ministério da Justiça, que acreditou piamente nela.

Adultos de 29 anos viram crianças

Ainda que houvesse mesmo milhares de Super-Homens e Mulheres Maravilhas sobrevivendo com seu corpo fechado a balaços e facadas anuais, a pesquisa continuaria inepta. Estaria contabilizando apenas uma parcela ínfima dos crimes, uma vez que perguntou apenas pelas tentativas de assassinato sofridas nos últimos 12 meses e não ao longo da vida dos entrevistados. Pode ser que o objetivo dessa limitação de tempo tenha sido evitar que o morador recente de uma cidade aumentasse o índice de violência do seu município atual ao relatar um crime ocorrido em outro. Mas há perguntas do mesmo teor na pesquisa que não restringem a resposta aos ‘últimos 12 meses’, o que desautoriza essa hipótese.

E, mesmo se fosse essa a preocupação, o método continuaria equivocado. Ser esfaqueado ou atirado por alguém dentro da própria casa (e basta que isso ocorra uma só vez na vida, pois não é provável que o fato se repita) é um histórico de violência grave, que costuma ter implicações na conduta da própria vítima onde quer que ela vá viver. Logo, trata-se um fator de risco para a segurança pública e teria de ser registrado pela pesquisa, ainda que com o devido cuidado para não misturá-lo com os registros de violência da cidade atual do entrevistado.

As respostas foram tão absurdas — transformando assassinatos e estupros em atos corriqueiros, testemunhados por muitos — que o próprio secretário-geral do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, responsável pela pesquisa, estranhou:

‘Um dado que impressiona é a incidência manifestada por 88% dos respondentes expostos à violência que declaram já terem visto corpos de pessoas assassinadas. Cerca de 8% afirmam, ainda, que pessoas próximas a eles foram vítimas de homicídios. `Ainda que sejam jovens e, naturalmente, possam cometer algum exagero na entrevista, trata-se de uma quantificação demasiadamente elevada e, óbvio, muito preocupante´, pondera Lima’ (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 24/11/2009).

Mesmo sem admitir que o absurdo das respostas é decorrente da aberração das perguntas, a fala de Renato Sérgio de Lima é um sintoma da ideologia que está por trás da pesquisa e ajudou a estragá-la desde o nascedouro. Ele desculpa o exagero dos entrevistados atribuindo-o a uma tendência natural da juventude, como se estivesse falando de adolescentes. Esquece que 60,7% dos entrevistados eram adultos com 19 anos ou mais, dos quais, 25,9% estavam na faixa etária de 25 a 29 anos.

Ao achar normal que pessoas adultas (22,7% das quais já eram pais e 9,8% com mais de um filho) se comportem como adolescentes ao tratar de assunto tão sério quanto um homicídio, Lima antecipa o fracasso anunciado do Projeto Juventude e Prevenção da Violência. Não é possível prevenir a violência mediante pesquisas científicas que tratam marmanjos como adolescentes, estendendo virtualmente a inimputabilidade penal para a idade de 29 anos, pois o pilar da segurança pública é a responsabilidade individual.

Sociologismo justifica o crime

Essa pesquisa segue a tendência da maioria dos estudos científicos sobre segurança pública realizados no Brasil, que, além de negligenciarem a responsabilidade individual, também apagam as diferenças entre os criminosos e suas vítimas, misturando tudo no conceito-esponja de ‘violência’, que já perdeu toda a sua operacionalidade de tão extensivo. É preciso recuperar no Brasil o antigo e bom conceito de ‘criminalidade’, sem prejuízo das análises sociológicas que devem, sim, buscar explicações – e não justificativas – para o crime e os criminosos.

A pesquisa do Ministério da Justiça vai em direção contrária. Para calcular o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência em cada município, ela se vale da média ponderada de cinco indicadores relativos à população jovem: os índices de homicídios, mortes por acidentes de trânsito, empregabilidade e educação, pobreza e desigualdade. No cálculo final do índice, o peso das mortes por acidentes de trânsito é o mesmo dos homicídios, contrariando o bom senso e a lei, ao confundir estatisticamente culpa e dolo. Disso decorre parte das gritantes distorções da pesquisa.

Enquanto o município de Teixeira de Freitas foi considerado o 8º mais violento do país, com um índice de vulnerabilidade juvenil muito alto, o Rio de Janeiro ficou em 64º lugar, entre os municípios de média vulnerabilidade. Entretanto, o índice de homicídios entre jovens do Rio é maior do que o do município baiano – 0,560 contra 0,504. A distorção é ainda maior quando se compara o Rio com Teresina. A capital piauiense ficou entre os municípios de alta vulnerabilidade, entretanto seu índice de homicídios (0,271) é menos da metade do índice de homicídios do Rio.

As sangrentas cidades da Baixada Fluminense também desaparecem do mapa da violência no país, quando se analisa o ranking das cidades mais e menos violentas da pesquisa. Nilópolis ficou em 82º lugar, entre as cidades consideradas de média vulnerabilidade, todavia, o seu índice de homicídios (0,721) é não apenas alarmante em si como também muito superior ao de Itabuna (0,577), a cidade considerada pela pesquisa a mais violenta do país.

Também o índice de homicídios de Duque de Caxias (0,743) é o sexto maior do país, mas a cidade caiu para o 15º lugar em vulnerabilidade. Já São João de Meriti, com um índice de homicídios de 0,678, aparece em 76º lugar na pesquisa, enquanto a cidade baiana de Camaçari foi considerada a quarta mais violenta do país, apesar do seu índice de homicídios (0,485) ser muito menor.

O desmentido dos cadáveres estudantis

Entre os fatores que contribuíram para elevar o índice de violência de cidades pacatas estão os indicadores educacionais dos municípios pesquisados, como acesso a escola e anos de estudo. Só no Morro dos Macacos, no Rio de Janeiro, deve haver mais oportunidades educacionais oferecidas pelo governo e ONGs estrangeiras do que na maioria das cidades e até capitais do interior do país. Logo, os jovens das cidades mais pobres têm menos anos de estudo e isso contribuiu para elevar o índice de violência desses municípios. É o que explica Renato Sérgio de Lima, responsável pela pesquisa:

‘Violência não é só crime, mas também uma série de outros fenômenos, como falta de escola, pobreza, desigualdade, acidente de trânsito. Isso compõe o cenário em que esses jovens vivem’ (Agência Estado, 24/11/2009).

Se os cientistas sociais brasileiros respeitassem os dados que coletam e não se limitassem a regurgitar a ideologia que lhes congestiona o cérebro, Renato Sérgio de Lima – que é doutor em sociologia pela USP e faz pós-doutorado na Unicamp – pensaria duas vezes antes de fazer essa afirmação. Os próprios dados que ele e sua equipe coletaram servem para desmenti-lo. Os dados deixam claro que freqüentar escola não protege o jovem da violência – pelo contrário, joga-o de corpo e alma no meio dela.

Do total de 4.872 jovens ouvidos, 1,8% relatou ter tido colegas de escola assassinados, enquanto somente 0,2% disseram ter tido colegas de trabalho assassinados. Entre os jovens com exposição ou história de violência, 3,6% relataram ter tido colegas de escola assassinados, mas, em relação aos colegas de trabalho, esse índice cai para 0,8%. E o perigo que a escola representa se evidencia ainda mais em relação àqueles que não têm histórico de violência: nenhum entrevistado desse grupo relatou assassinato de colegas de trabalho, mas 1,1% tiveram colegas de escolas que foram vítimas de homicídio.

Esses dados mostram que a escolarização em massa transformou a escola num ambiente eticamente insalubre, onde proliferam transgressões e crimes, como a prostituição juvenil e o tráfico de drogas. Isso é inevitável, como sabem os governos de muitos países desenvolvidos, onde não se combate crime com matrícula em escola, mas com a prisão dos bandidos. É o que ocorre em São Paulo, que aparece na pesquisa com um índice de homicídios quase milagroso levando em conta seu tamanho: 0,209 – bem menos da metade do índice do Rio de Janeiro. Sem dúvida, pelo fato de São Paulo prender mais bandidos, como já demonstrou em seu blog, em outras ocasiões, o jornalista Reinaldo Azevedo.

Saindo da escola, fugindo da violência

Se resta alguma dúvida de que escola não serve para reduzir a violência (pois tende a fomentá-la no caso da escolarização em massa), ela se esvai quando se analisa a escolaridade dos dois grandes grupos da pesquisa: jovens sem exposição e história de violência e jovens com exposição e história de violência. O percentual de analfabetos entre os dois grupos (0,3%) é idêntico. O percentual dos que têm ginasial completo é maior entre os grupos com história de violência (8,5% contra 6,5%). O mesmo ocorre com o colegial completo: 29,4 entre os que apresentam história de violência e 25,8 entre os que não apresentam. Uma diferença substancial de 4,4 pontos.

Com base nessas diferenças, torna-se imperativa a seguinte hipótese: a escola pode ter sido o fator que empurrou muitos dos entrevistados para o grupo dos que estão expostos à violência. Essa hipótese sai da esfera do plausível para o campo do provável quando se observa que o percentual de jovens com ginasial incompleto é maior entre os não expostos à violência: 28% contra 26,6% dos expostos. O mesmo se repete em relação ao colegial incompleto: 26,3% entre os não expostos contra 25,2% entre os expostos.

Se a lógica dos arautos da escolarização como forma de combate à violência estivesse certa, o índice de alunos que não completam os estudos deveria ser maior entre aqueles que apresentam exposição ou histórico de violência. Mas dá-se exatamente o contrário: os alunos envolvidos com a violência ficam na escola e os outros saem dela, provavelmente por perceberem que — abandonando os estudos e indo trabalhar mais cedo — correm menos riscos de conviver com drogas e até cadáveres.

Presuntos humanos virtuais

Essa pesquisa reforça uma tese que não me canso de repetir: o país não tem cura não é por falta de remédio, mas por incapacidade de diagnóstico. Na área da saúde, existem as ‘doenças iatrogênicas’, causadas pelos próprios médicos, muitas vezes devido a um diagnóstico errado. Na sociedade brasileira acontece o mesmo. Padecemos de uma espécie de ‘iatrogenia social’. Como ela não é causada por médicos (do grego iatrós) e, sim, por intelectuais universitários, trata-se uma doença cognogênica (de cogn, ‘conexo ao conhecimento’), isto é, derivada da má aplicação do saber.

As doenças cognogênicas ocorrem quando um diagnóstico errado de um fenômeno social acaba criando distúrbios concretos ao propor soluções para problemas imaginários. É o que vem ocorrendo com a política de cotas para negros. A terapêutica errada já nasce do diagnóstico defeituoso — o mito de que existe um violento racismo no Brasil, um ‘genocídio cotidiano de jovens negros’, como afirma a Conferência Nacional da Juventude, que inspira a pesquisa do Ministério da Justiça. Como a política de cotas ataca um racismo inexistente, ela acabará por criá-lo de fato, gerando o ressentimento de brancos injustiçados contra negros privilegiados.

O mesmo se dá, agora, com essa pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública patrocinada pelo Ministério da Justiça. Os municípios com baixos índices de homicídio que foram colocados indevidamente entre os mais violentos do país deveriam processar o ministro Tarso Genro por crime de responsabilidade. Uma pesquisa como essa — sobretudo pelo modo sensacionalista como foi divulgada pelo próprio governo — pode afugentar investidores dos municípios considerados violentos.

Uma cidade como Teresina (a capital mais prejudicada por esse estudo) tende a fazer de sua relativa tranqüilidade um atrativo para os investimentos externos. Mas será desmentida pelo peso da pesquisa, agora que foi considerada mais violenta do que um sinônimo internacional da criminalidade — o Rio de Janeiro. Os piauienses deveriam se rebelar contra esse contrabando estatístico de Tarso Genro. O Ministério da Justiça — apenas para beneficiar o Rio das Olimpíadas — não pode obrigar um município a fazer o papel de receptador dos crimes de outro. Que Teresina possa devolver ao Rio os presuntos humanos virtuais — desovados em sua reputação pelo Comando Vermelho ideológico que subjuga a ciência.

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Sociólogo, Goiânia, GO