Wednesday, 08 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O debate, refém da televisão

A disputa presidencial agitou o mercado editorial norte-americano e brasileiro. Vários livros foram publicados, dentre os quais escolhemos um para resenhar. E o contemplado foi O ataque à razão, de Al Gore.

A obra tem nove capítulos e mais um à guisa de conclusão. Mesmo assim, podemos dividir o livro em duas partes. Al Gore fala simultaneamente do passado e do presente da democracia norte-americana, tentando infundir no leitor a percepção de que não existe uma relação de continuidade entre o que está ocorrendo e o que desejavam os fundadores dos EUA. As referências históricas são importantes, mas os interessados nelas terão que ler o livro. Nesta resenha concentraremos nossos esforços sobre as questões atuais.

A principal causa dos problemas que os norte-americanos estariam sofrendo decorreria da supressão do debate público. A culpada disto seria a TV. ‘De repente, no decorrer de uma única geração, os norte-americanos promoveram uma mudança impactante em seu cotidiano e passaram a ficar sentados imóveis em frente a uma tela, olhando fixamente para imagens oscilantes, durante mais de trinta horas por semana. A TV não só ocupa uma porção maior do tempo e da atenção que as pessoas dedicam às notícias e à informação, como também começou a dominar uma porção maior da esfera pública como um todo. Além do mais, como os anunciantes descobriram com muita rapidez, o poder que ela tem de motivar mudanças de comportamento, também se revelou sem precedentes.’

Ouvem, mas não falam

Em conseqüência de a televisão ter se tornado a principal fonte de (des)informação dos norte-americanos, a política daquele país também acabou se tornando refém daquele meio de comunicação. ‘O mesmo fenômeno que Galbraith observou no mercado publicitário é atualmente fato dominante no que costumava ser o mercado de idéias dos EUA. O valor ou validade inerente das propostas políticas apresentadas por candidatos a cargos eletivos, hoje é amplamente irrelevante na comparação com as campanhas de propaganda baseadas na imagem que eles usam para delinear a percepção dos eleitores. E o alto custo desses comerciais fez aumentar de maneira radical o papel dos endinheirados na política nacional – e a influência das pessoas que fazem contribuições financeiras.’

Um pouco mais adiante, o autor faz a relação entre a necessidade das campanhas serem televisivas e o custo das mesmas. ‘É por isso também que os comitês de campanha da Casa dos Representantes e do Senado, do Partido Republicano e do Democrata, atualmente procuram candidatos que sejam multimilionários e que possam comprar os anúncios com seus próprios recursos. Não é de surpreender que as fileiras do Congresso tenham hoje um maior número de integrantes ricos.’

Dentre os males impostos pela TV à política e ao debate político, Al Gore destaca que os ‘…indivíduos recebem, mas não podem enviar (informação). Absorvem, mas não podem compartilhar. Ouvem, mas não falam. Enxergam movimento constante, mas eles mesmos não se mexem. Os ‘cidadãos informados’ correm o risco de se transformar em ‘audiência receptiva’.’

Ideologia estreita

O medo e a religião têm sido habilmente explorados por George W. Bush nos EUA para realizar sua política externa baseada exclusivamente na guerra. Coagir os inimigos e amedrontar os desafetos e parceiros internacionais tem o único instrumento diplomático da Casa Branca. Não é a toa que a TV tem sido seu meio predileto para ‘debater’ política com os norte-americanos. Nem ele nem seus assessores civis e militares esperam que a população dos EUA decida o que quer que seja.

Apesar de Bush usar e abusar da religião em seus discursos, Al Gore defende a tese de que a mesma não está no centro das cogitações de Bush. ‘Não se engane: é a ideologia reacionária do presidente, não sua fé religiosa, a responsável por sua inflexibilidade desconcertante. Sejam lá quais forem seus pontos de vista religiosos, o presidente Bush tem tamanha certeza absoluta a respeito da validade de sua ideologia rígida de direita que não sente a mesma vontade que muitos de nós sentiríamos de reunir fatos relevantes às questões que se apresentam. Como resultado, ele ignora os avisos de seus próprios especialistas, proíbe que discordem dele e com freqüência se recusa a testar a validade de seus preceitos frente a melhores evidências disponíveis. Na verdade, ele não está em contato com a realidade e sua imprudência coloca em risco a segurança e o conforto do povo norte-americano.’

Para Al Gore, a verdade é que Bush comporta-se como um ditador. Ele e seus sócios buscam ‘… nada além de poder absoluto. Seu grande plano é ter um Executivo todo-poderoso usando uma legislatura enfraquecida para moldar um Judiciário complacente à sua própria imagem. Eles se empenham em acabar com a separação dos poderes. E, no lugar do atual sistema, buscam estabelecer um em que o poder seja unificado a serviço de uma ideologia estreita, servindo a um conjunto de interesses estreitos’.

Uma ratoeira melhor

Quando se refere a ‘eles’, o autor se refere aos comentaristas, eruditos e repórteres que se dedicam a fazer propaganda governamental na TV. ‘Essa quinta coluna no quarto Estado é formada por propagandistas que fingem ser jornalistas. Por meio de diversos meios de comunicação sobrepostos, que cobrem o rádio, a televisão e a internet, eles enfiam goela abaixo do povo norte-americano, sem dar trégua, pontos de vista de direita e dogmas ultra-conservadores disfarçados de notícias e informações de entretenimento – 24 horas por dia, sete dias por semana, 365 dias por ano.’ Se estivesse vivo, o ministro da Propaganda nazista certamente ficaria satisfeito com seus discípulos norte-americanos.

Al Gore é preciso e, sobretudo, honesto. Os fatos estão aí e foram colocados da maneira mais precisa possível. Contudo, o autor de O ataque à razão evita tirar a conclusão necessária dos fatos que expôs e que dizem respeito aos dois partidos que dominam a administração pública norte-americana. A predominância avassaladora do poder econômico na arena política não é uma característica do regime democrático, mas sim do regime oligárquico ou plutocrático. Al Gore admite implicitamente que os norte-americanos vivem num regime oligárquico ou plutocrático, mas insiste em se referir os EUA como democrático.

À concentração de poder político nas mãos dos milionários, corresponde o processo avassalador de destruição da competição empresarial. Segundo o autor, a atividade econômica nos EUA está se tornando um monopólio das empresas com condições de fazer propaganda na TV. ‘Outra conseqüência da nova importância da publicidade nos meios de eletrônicos de comunicação em massa no mercado é que hoje existem vários setores nos EUA nos quais a concorrência, de fato, se limita a empresas que têm a riqueza concentrada necessária para montar enormes campanhas de marketing. A qualidade inerente do produto em questão e seu preço continuam tendo grande importância, é claro – mas a capacidade de novos concorrentes, inclusive pequenos empresários, de causar impacto na disputa com uma ratoeira verdadeiramente melhor é reduzida de maneira acentuada. A concentração de riqueza corporativa resultante nas mãos de números cada vez menores de conglomerados cada vez maiores ocorreu ao mesmo tempo em que o poder político passou a se concentrar nas mãos de um número menor de pessoas.’

O aumento do sigilo

A esquerda marxista-leninista tem boas razões para considerar o livro de Al Gore curiosa e hilariamente grotesco. Apesar de um ferrenho defensor da democracia capitalista dos EUA, o autor utiliza o universo conceitual criado por Marx e aperfeiçoado por Lênin para criticar este novo ‘capitalismo monopolista’, que utiliza o ‘Estado burguês’ como sua ferramenta para concentrar mais poder e renda nas mãos dos bilionários que financiam campanhas eleitorais e se tornam os principais mandatários do país. É claro que o autor não cita abertamente Marx e Lênin. Contudo, as semelhanças das abordagens dos três são evidentes. O que Al Gore julga serem desvios atuais do capitalismo e do Estado norte-americanos, Marx e Lênin já consideravam as características essenciais de ambos no final do século 19 e início do seguinte.

As relações entre os Estados e os cidadãos sempre foram ambíguas. Os últimos sempre foram estimulados ou coagidos a dizer apenas a verdade. Já os primeiros, entretanto, sempre se reservaram o direito de omitir a verdade, de censurar a imprensa direta ou indiretamente, de divulgar versões oficiais implausíveis ou mentir escandalosamente.

Nos EUA não tem sido diferente. ‘Todos ocupantes recentes da Casa Branca – inclusive a administração da qual participei – prestam mais atenção à informação que é divulgada pelo governo e sentiram a vontade de tentar controlar as impressões formadas na mente dos cidadãos. Infelizmente, durante a atual administração, essa vontade levou a um enorme aumento do uso do sigilo, um ataque determinado à integridade das descobertas científicas que pudessem minar os esforços do governo de intimidar e silenciar qualquer pessoa que detivesse informações que pudessem ser usadas para questionar as decisões tomadas pelo governo.’

O ‘pior’ erro estratégico

No caso da administração Bush/Cheney, a mentira teria se tornado a regra. ‘Pior ainda, a Casa Branca atual empenhou-se em uma campanha firme e sem precedentes de dissimulação em massa – em particular, no que diz respeito a seus planos de ação no Iraque. A dissimulação ativa, exercida por quem está no poder, torna praticamente impossível a verdadeira deliberação e o debate pertinente entre o povo. Quando qualquer administração mente para o povo, a capacidade do país de tomar decisões coletivas sábias a respeito da nossa República fica enfraquecida.’

Os militares norte-americanos estão se atolando no Iraque. Isto é um truísmo e preocupa o autor. Mas em nenhum momento o autor questiona seriamente a injustiça dos EUA sempre recorrerem à força bruta para fins políticos. Al Gore não é um pacifista. O que o preocupa é investigar como o fracasso militar no Iraque ocorreu, após todas as lições aprendidas no Vietnã. ‘Depois da tragédia do Vietnã, as forças militares dos EUA comprometeram-se de maneira impressionante a aprender tudo que fosse possível com a experiência do Sudeste Asiático. Ao usar a lógica e a razão para dissecar cada um dos erros cometidos, nossos líderes militares realizaram uma transformação histórica nos serviços uniformizados.’

O ataque à razão foi escrito principalmente para o público norte-americano. Em nenhum momento a obra questiona a política externa dos EUA levando em conta os interesses dos países prejudicados em virtude das decisões políticas e militares tomadas na Casa Branca. É mais que um panfleto partidário e menos do que uma fria e isenta análise da política externa norte-americana. ‘As históricas avaliações errôneas que conduziram à tragédia da invasão norte-americana no Iraque poderiam ter sido facilmente evitadas. O arrogante controle da informação do governo e a brutal dissimulação lançada para cima do povo norte-americano com o intuito de conquistar aprovação para um plano de ação desonesto levou ao pior erro estratégico da história dos EUA.’ A crítica à invasão despreza o sofrimento das vítimas iraquianas do erro estratégico. Também ignora as conseqüências nefastas para as economias de diversos países em razão da alta do petróleo ocorrida após a invasão do Iraque.

Quem venceu a Guerra Fria?

Apesar de criticar aberta e duramente Bush/Cheney em razão da difusão do medo dos ataques terroristas como forma da administração e obter e conservar seu poder de tomar iniciativas impopulares, Al Gore também inspira medo nos leitores americanos. ‘Os abusos constantes das liberdades civis pelo governo Bush-Cheney também promovem a falsa impressão de que esses desrespeitos são necessários para tomar todas as precauções contra mais um ataque terrorista. Mas a simples verdade é que a ampla maioria dos abusos não beneficiou nossa segurança de maneira alguma; ao contrário, causou danos à nossa segurança. E esta administração nos fez avançar muito na estrada que vai na direção de um governo intrusivo, ao estilo ‘Big Brother’, ou ‘Grande Irmão’ – na direção dos perigos profetizados por George Orwell em seu livro 1984 – mais do que qualquer pessoa jamais imaginaria possível nos EUA.’

A referência a Orwell é importante e merece mais atenção. O escritor inglês lutou na Guerra Civil espanhola ao lado dos republicanos e foi alvo da ira dos comunistas durante e depois do conflito em razão de criticar os equívocos que os mesmos cometeram. As principais obras de George Orwell (1984 e A Revolução dos Bichos) são diatribes contra o autoritarismo dos comunistas soviéticos.

Em razão do conteúdo do parágrafo transcrito e da citação a Orwell, podemos chegar à conclusão que Al Gore admite que os EUA de Bush/Cheney estão se tornando tão ‘democráticos’ quando a URSS de Breznev. É claro que Al Gore não diz isto abertamente, mas a sugestão é evidente e nos leva a outra questão crucial. Quem, afinal, venceu a Guerra Fria? Os norte-americanos gostam de divulgar a versão de que venceram os comunistas russos. Todavia, como os EUA estão se tornando parecidos com a extinta URSS, me parece que foram os ideólogos soviéticos que ganharam a Guerra Fria sem disparar um único míssil nuclear.

O reinado do medo

Uma prova adicional da vitória soviética é a violação dos direitos humanos dos prisioneiros de guerra ter se tornado um padrão norte-americano. Al Gore afirma que ‘…um levantamento feito pelo exército a respeito de mortes e abusos de prisioneiros no Iraque e no Afeganistão mostrou um padrão de maus-tratos amplamente disseminado, envolvendo um número significativo de unidades militares em muitos locais diferentes. Esse padrão de abuso, obviamente, não surgiu de algumas mentes distorcidas nas fileiras mais baixas dos nossos militares alistados. Derivou de valores distorcidos e de planos de ação atrozes do nível mais alto do nosso governo. Isso foi feito pelos nossos líderes, em nosso nome’.

Durante décadas, com muita razão, a Casa Branca acusou a URSS de violar os direitos humanos dos detentos. Os Gulags soviéticos foram desmantelados na década de 1970 e duas décadas depois a própria URSS se esfacelaria. Ironicamente, mesmo difundindo a versão de que venceram os comunistas russos, os norte-americanos institucionalizaram as práticas da KGB stalinista. Se ainda respirassem, Stalin, Beria, Molotov, Breznev e outros carniceiros soviéticos certamente dariam boas risadas à custa do livro de Al Gore.

Outra prática soviética que os norte-americanos copiaram sob Bush/Cheney foi a guerra preventiva. Quando ainda demonstrava fôlego econômico e militar, a URSS invadia preventivamente seus satélites todas as vezes que suas populações e líderes começavam a ter idéias burguesas. Os comunistas soviéticos não admitiram sequer a hipótese dos tchecos e húngaros se espelharem na Europa. ‘Se outras nações afirmassem ter o direito amplo às ações preventivas que o governo Bush diz ter, no entanto, o princípio geral do Direito seria substituído pelo reinado do medo.’ Ninguém tem mais medo dos comunistas. Na atualidade, só os norte-americanos recorrem à guerra preventiva soviética.

As ‘mudanças de curso’

No capítulo ‘A crise do carbono’, o autor retoma seu tema predileto, ou seja, a ecologia. No seguinte, faz um detalhado balanço da democracia norte-americana sob Bush/Cheney. Al Gore detalha quais foram as violações constitucionais praticadas pela atual administração com a aquiescência ou silêncio da maioria dos norte-americanos. Este capítulo reforça a tese de que os EUA deixaram de ser uma democracia. Entretanto, o autor prefere difundir a idéia de que o governo Bush/Cheney representa uma ‘mudança de curso’ que pode e será corrigida porque os valores consagrados na Constituição dos EUA são essencialmente bons.

A tese da ‘mudança de curso’ não é nova. A mesma tem sido utilizada desde os anos 1960 por ardorosos defensores dos EUA. Como já disse Noam Chomsky a respeito do terror estatal patrocinado pela Casa Branca:

‘Freqüentemente, apesar dos maiores esforços, intelectuais responsáveis acham difícil ocultar o apoio que o governo norte-americano concede a essas medidas. Trata-se de um problema porque, por princípio doutrinário, os governos dos Estados Unidos são benignos, humanitários, comprometidos com a democracia, a liberdade e os direitos humanos, senão santos por índole. Quando se revela de forma muito clara o quanto se dedicam a atrocidades selvagens, são necessários novos instrumentos para resolver a contradição entre a verdade e a verdade maior. Uma das técnicas utilizadas é a doutrina da ‘mudança de curso’. Sim, coisas ruins aconteceram quando nos desviamos do nobre caminho que havíamos estabelecido, por razões infelizes, embora compreensíveis; mas agora tudo isso é passado, podemos esquecer a história e marchar orgulhosamente para a frente, em direção a um grandioso futuro. Aqueles que não conseguem lidar com essas rotinas com uma face impassível, fariam melhor se deixassem de lado qualquer pretensão de seguir carreira como respeitável comentarista de assuntos de Estado’ (Camelot, os anos Kennedy, 1993, editora Página Aberta).

Justamente porque recorre ao clichê da ‘mudança de curso’, O ataque à razão é interessante. O livro documenta como as ‘mudanças de curso’ já se transformaram no american way of life.

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Advogado, Osasco, SP