Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O degredo do JB

O carma do velho Jornal do Brasil, patrimônio da nossa mídia impressa, parece não ter fim. Não bastassem os expurgos que lhe são aplicados continuada e sistematicamente, privando-o dos seus melhores e tradicionais quadros profissionais, os atuais proprietários – membros da abominável classe de ‘empresários de comunicação’ que se enquistou nas redações nacionais, à guisa de uma tropa de vorazes e alienantes cupins – anunciam agora a intenção de levar o jornal para Brasília.

A se crer na nota distribuída pelo Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro no final da tarde de quinta-feira (21/10), a transferência (melhor seria dizer exílio) da edição para a Corte teria como finalidade tornar o jornal ‘mais perto do governador Joaquim Roriz’.

Pobre JB. Exangue, agônico, trôpego e miserável, e ainda assim lhe tentam roubar o sacrossanto direito de perecer em paz na sua terra natal, a cidade que o acolheu e tratou tão bem a ponto de fazê-lo uma autêntica institucional carioca, legítimo fazedor de cabeças, mentes e costumes por várias décadas.

Quantos de nós, cinqüentões em diante, não aprendemos a ler e a se viciar em jornais justo pelo hábito de comprá-lo na banca mais próxima, prosaica providência que se confundia com verdadeira imposição cultural da (outrora) Cidade Maravilhosa?

Possibilidade remota

Que sina é esta, capaz de obrigar o JB a cumprir tão nefasto e longo féretro, apenas a fim de ser entregue ao coveiro? Ou o senhor governador supracitado nada teve a ver, por exemplo, com a defenestração do jornalista Ricardo Noblat de importante diário braziliense?

Mas é bobagem se fixar na figura de Roriz. Governadores outros, e que mais postos ocupem detentores de mandato popular no Brasil, metamorfoseiam-se automaticamente em vampiros de jornais (e de demais mídias) a partir do exato instante em que, pela força do cacife, aqueles põem seus pés nas mesas destes.

Tal mania, há muito consagrada no interior do Brasil, é simultaneamente cômica, trágica e patética. Inspira-se no pressuposto pelo qual dominar um jornal ou uma rádio é o caminho mais curto para tomar (e permanecer ad nauseam) o poder.

Estultice da grossa. Jornais, apenas para não perder o foco do anunciado desterro do JB, perdem toda sua substância, ou sua alma, a partir do momento em que não tocados por jornalistas. Reduzem-se então a mero instrumento de achaques, chantagens, extorsões e demais ferramentas típicas das rotinas das máfias, que tanto parecem encantar boa parte da classe política tupiniquim.

Entenda-se a expressão ‘tocados por jornalistas’ na conta de algo moralmente bem diferente dos paus-mandados coleguinhas que infestam as redações Brasil adentro, muitos deles os próprios donos da coisa jornaleira, que há muito perderam qualquer resquício de vergonha na cara em troca de milionárias mesadas. Voltando ao interior, é remotíssima a possibilidade de se ouvir ‘o jornalista fulano’ ou o ‘jornalista cicrano’. O que se ouve, com repugnante freqüência, é ‘o dono de jornal fulano’ ou ‘o dono de jornal cicrano’.

Pobre jornal

Numa ocasião, em palestra para de acadêmicos de Comunicação de uma faculdade particular – e naturalmente cara – de Campo Grande, MS (700.000 habitantes, onde circulam menos de 25.000 exemplares/dia), um trepidante aluno assim respondeu à afirmação de que determinado diário publicava apenas o que era do intere$$e do seu proprietário: ‘Ué, que mal tem isso, ele não é o dono?’

Conclusão óbvia e dolorosa: o perguntador, e demais beócios condenados a ser peões de texto diplomados, não têm a menor noção do que significa a expressão concessão pública.

Mas, convenhamos: a se confirmarem as suspeitas, exilar o Jornal do Brasil em Brasília passa dos limites da inteligência (e da decência). É nada mais nada menos que grotesca tentativa de contrabandear tradição, prestígio, nome e demais atributos que ainda (será?) resistem ao seu estrebuchamento. Como se fosse uma transfusão de sangue.

Os autores da suposta empreitada logicamente garantiriam ao crédulo governador a lisura da operação e a autenticidade da mercadoria. Não tem santo por aí que sangra há milênios? E o que não falta em Brasília é vampiro.

Pobre JB.

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Jornalista e médico