Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O futebol e a passividade popular

Após ver, mais uma vez, cenas de vandalismo e protesto por conta da derrota de um time do futebol, alguns pontos importantes surgem para serem pensados. Com certeza, pelo fato de tanta reclamação e comoção não se aplicarem a questões de maior importância social e humana – como a precariedade dos hospitais, segurança, educação etc. – elementos históricos e políticos devem ser observados.

Porém, por se tratar de um canal tradicionalmente dedicado à crítica e à observação da imprensa, vale um olhar sobre este assunto a partir do papel da mídia enquanto agente incentivadora dessa identidade cultural largamente usada para classificar o brasileiro como povo que se preocupa e protesta por melhorias em seu clube de futebol, mas não faz o mesmo em relação à sua cidade e país.

Como exemplo disso, no dia seguinte à eliminação do Corinthians pele o modesto time colombiano Tolima, em uma emissora de televisão (Band) onde às 11h15 da manhã tem início uma programação diária sobre esportes (entenda-se, futebol) que se arrasta até quase às 15h, por volta de 13h30, Datena, Neto e Ceará, começam a questionar a revolta dos corintianos (que quebraram tudo ontem), dizendo que ‘para outros assuntos o brasileiro não reclama com tamanha veemência’.

Logo em seguida, em gravação no Parque São Jorge que mostrava os estragos feitos pela torcida do Corinthians, aparece em cena um famoso repórter esportivo da Rede Record. Datena, ao reconhecer o jornalista, nomeia a emissora concorrente e alerta: ‘Fiquem na Band, não mudem para a Record, lá não tem programa esportivo agora.’

Marketing não entra em campo

A paixão do brasileiro pelo futebol pode não ser gerada pela mídia, é bem anterior ao surgimento da televisão, por exemplo. Mas que a insistência (em especial do programa citado, que apesar de passar mais de três horas diariamente discutindo futebol, questiona tais exageros) tem papel fundamental na formação dessa ‘identidade nacional’, isso tem. Afinal, se querem que o povo brasileiro reclame do governo suas necessidades básicas, por que o próprio Datena, com a visibilidade que tem na mídia, não fala menos de futebol e começa a apresentar matérias sociais e denúncias que sensibilizem a população a reclamar seus direitos?

O povo (apesar dos problemas da generalização, uso a palavra povo em referência à forma como foi usada pelo programa esportivo citado), em alguma medida segue o padrão representado pela mídia e pelo seu país. A TV insiste no futebol porque ele é muito mais que um esporte, está além do elemento cultural que representa. O futebol faz parte do jogo político e econômico.

Da mesma forma que esse ‘povo’ reclama apenas do futebol, o Estado comemora a realização de uma Copa do Mundo em um país que não consegue sanar várias necessidades básicas da população. Do outro lado do jogo, as grandes redes de comunicação se aproveitam dessa paixão dos brasileiros para lucrar milhões por meio da formação de torcedores-consumidores e de contratos publicitários milionários com empresas privadas – em especial empresas de cerveja, elemento que segundo a mídia, alimenta os nossos ‘guerreiros’ da seleção e não pode faltar nas comemorações pois ‘combina com tudo, principalmente com você’.

O futebol, sem dúvida alguma, é fator cultural e paixão inquestionável do brasileiro. É saudável, é esporte, diversão e saúde. Porém, há um outro futebol (o que aparece na mídia) e que serve àqueles a quem o interesse é o lucro, acima do esporte. Vale lembrar que os responsáveis pela direção do Corinthians, eliminado pelo modesto Tolima, passaram os últimos tempos se preocupando majoritariamente com o marketing da ‘empresa’ Corinthians na tentativa de tornar o clube uma ‘marca’ forte. Se esqueceram que marketing não entra em campo e que deixar o futebol de lado pode ser um perigo até para quem só está preocupado com o lucro, e não com a beleza do espetáculo.

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Jornalista e mestrando em Comunicação, São Paulo, SP