Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

O grande aliado do presidente

Antes mesmo de ver o Brasil se tornar a ‘pátria de chuteiras’, o intelectual brasileiro já se comportava como chefe de torcida organizada. Canudos é um exemplo. À exceção do sábio Machado de Assis, todos os intelectuais brasileiros da época pediram o extermínio de Antônio Conselheiro e seus seguidores, inclusive Euclides da Cunha, cujo centenário de morte é celebrado neste ano de 2009. Somente quando a vila de Canudos foi completamente arrasada e suas mulheres e crianças se tornaram despojos de guerra, os intelectuais se deram conta da tragédia. Mas, por não admitirem o pecado anterior, cometeram um novo: deram início à santificação do Conselheiro e seus jagunços, muitos deles frios assassinos, homiziados em Canudos por conta de crimes anteriores.

Essa mentalidade de torcida organizada, que divide o mundo em amigos e inimigos, continua imperando entre os intelectuais brasileiros, com reflexos diretos na imprensa. Se os contemporâneos da destruição de Canudos eram filhos do radicalismo positivista, os contemporâneos das pesquisas com células-tronco são filhos do extremismo marxista. Uns e outros acham que o mundo é bipolar e não existe meio-termo entre ciência e religião, esquerda e direita, devassidão e moralismo. Se um pai não quer ver sua filha de 11 anos sendo obrigada a manusear pênis de borracha na escola, o seu bom senso logo é tachado de reacionarismo. Se é assim no lusco-fusco dos costumes, o que dizer da arena política, em que os antagonismos afloram naturalmente?

Supremo optou por se autodestuir

Em face desse maniqueísmo histórico, nada mais natural que o bate-boca no Supremo entre os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa tenha dividido a imprensa entre duas torcidas organizadas – a dos que apóiam Lula e a dos que são contra ele. Há muito, o ministro Gilmar Mendes é reduzido a chefe da oposição pela imprensa e intelectuais petistas e exaltado como prócere da República pela imprensa e intelectuais não petistas. Mas as duas torcidas se enganam: Gilmar Mendes é o principal aliado de Lula, tanto quanto Joaquim Barbosa. Seu personalismo exacerbado – a exemplo do personalismo de Lula – enfraquece as instituições desta malfadada República, que não passa de um aborto histórico de meia dúzia de militares golpistas.

Uma Justiça que para ser Justiça depende de um homem só não é exatamente Justiça, mas caudilhismo de toga. Aliás, tem sido sempre assim. Desde Fernando Henrique Cardoso que o presidente do Supremo é quase sempre um caudilho, ora impondo a vontade do Executivo a ferro e fogo, como fazia Nelson Jobim, ora posando de chefe de oposição, a exemplo de Maurício Correa, já no governo Lula. Sem dúvida, o Supremo é um tribunal também político, mas se os seus presidentes insistirem em transformá-lo numa tribuna, o Brasil corre o risco de se tornar uma Venezuela, país em que todas as instituições se partidarizaram, graças ao caudilhismo de Hugo Chávez.

Mas não é só Gilmar Mendes quem incorre em caudilhismo de toga – hoje, quase todos os ministros do Supremo se prestam a esse papel. A transmissão dos julgamentos pela televisão aguça a humana vaidade dos membros da alta Corte, que passaram a pensar não só nos autos, mas também na platéia. Quando Joaquim Barbosa disse para Gilmar Mendes que o presidente do Supremo ‘está na mídia destruindo o Judiciário brasileiro’, ele se esqueceu que o próprio Supremo optou por se autodestruir na mídia ao transformar suas sessões num espetáculo de gladiadores para o deleite de uma platéia televisiva. Sem a transmissão pela TV, a discussão entre os dois ministros não teria sido tão grave quanto foi.

Regular a economia mediante decretos

Ainda que provocado por Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa extrapolou todos os limites imagináveis para o comportamento de um ministro do Supremo. Ele parece abusar da sua condição de negro no país das cotas. Se não fosse o medo de ser tachado de racista, provocando enorme comoção nacional, provavelmente o Supremo teria aberto processo de impedimento contra seu primeiro ministro negro. Ao dizer que Gilmar Mendes não estava falando com ‘seus capangas do Mato Grosso’, Barbosa, além de ofender os mato-grossenses (já que não diria ‘capangas de São Paulo’), confessou que não cumpre com o seu dever de agente público. Não cabe à imprensa investigar a existência dos improváveis capangas denunciados pelo ministro Joaquim Barbosa – ele próprio é quem tinha o dever legal e moral de comunicar oficialmente o fato à Procuradoria-Geral da República, e não fazer alarde para a ‘lente da verdade’ da TV Justiça.

O populismo jurídico de Joaquim Barbosa é primo-irmão do caudilhismo jurídico de Gilmar Mendes e ambos servem ao protagonismo do Judiciário que a esquerda tanto quis. Tão logo conseguiu aparelhar os cursos de direito, que hoje também rezam na cartilha do Foucault de Vigiar e Punir, a esquerda passou a defender o protagonismo do Judiciário, pois percebeu que a nova geração de juízes – inclusive os do STF – é majoritariamente de esquerda no campo dos costumes, tanto que as últimas decisões desta alta Corte, da questão do aborto a células-tronco, passando por questões de segurança pública, parecem saídas do programa de governo do PT. Por trás do habeas-corpus de Dantas, vista como ‘decisão da direita’, esconde-se a completa lassidão penal que tomou conta do país, graças à visão esquerdista hegemônica de que ninguém é responsável por seus próprios crimes – a desigualdade social é que responde por todos os criminosos.

O intelectual brasileiro, vítima de um bacharelismo congênito, vangloria-se de ser mais avançado que a nação, daí a Constituição de 1988 ter sido feita não para o país real, mas para o país dos sonhos da esquerda emergente. Tanto que a esquerda sempre defendeu que a Constituição fosse auto-aplicada, renegando a necessidade de leis complementares; afinal, era interessante, por exemplo, aplicar o inciso VIII, § 3º do artigo 192 (posteriormente revogados), que limitavam os juros em 12% ao ano, como se fosse possível regular a vida real da economia mediante decretos legislativos.

Lei correta foi rasgada

Se a Constituição chegou a esse ponto no plano econômico, foi muito mais longe na área social, especialmente na questão da segurança pública, onde a máxima ‘é proibido proibir’, do maio de 1968, tornou-se ‘é proibido punir’. O Supremo aderiu a esse minimalismo penal, quando revogou a lei dos crimes hediondos, e agora beira o absenteísmo penal, com a obsessão de Gilmar Mendes em soltar 189 mil dos 440 mil presos brasileiros (que já são pouquíssimos), com base na absurda tese de que só não é inocente aquele que a última instância da Justiça diz que é culpado. Ora, com a profusão de recursos que a Justiça brasileira permite, essa decisão significa a completa impunidade da maioria dos criminosos, especialmente dos mais ricos ou dos mais perigosos, que se igualam no acesso fácil a advogados.

Quando se trata de facilitar a vida de criminosos de alta periculosidade, como latrocidas e estupradores, o Supremo não hesita em fazer nem mesmo o papel de Legislativo e Executivo. E nisso Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa se igualam, a exemplo dos demais ministros. Para inviabilizar a lei dos crimes hediondos, o Supremo alegou que ela não previa o princípio constitucional da progressão de pena. Pois bem, o Congresso corrigiu esse suposto erro e, por intermédio da Lei 11.464, de 28 de março de 2007, sancionada pelo presidente Lula, introduziu a progressão de pena na lei dos crimes hediondos, só que com mais rigor: o preso por crime hediondo tem de cumprir 2/5 da pena, se for primário, ou 3/5, se for reincidente.

Mas, em 5 de março deste ano, o Supremo de Gilmar e Barbosa decidiu – por unanimidade – que os condenados por crime hediondo podem progredir de regime de acordo com a Lei 11.464, mas a progressão deve começar tão logo seja cumprida a ínfima parcela de 1/6 da pena, segundo a Lei de execuções penais. Na prática, agindo como Legislativo, o Supremo rasgou a correta lei que o Congresso havia aprovado. Como a Lei 11.464 não passa de uma emenda à lei dos crimes hediondos – com apenas um artigo e quatro parágrafos, que tratam exclusivamente do regime de progressão de pena –, dizer que esse regime não vale é jogar fora toda a lei.

Basta ouvir o bom senso

Mas não pára aí a suprema condescendência com bandidos. Também em 5 de março deste ano, os ministros do Supremo concederam habeas-corpus a um réu condenado por latrocínio a 30 anos de reclusão. Como esse réu ficou foragido durante todo o curso do processo criminal, o seu recurso de apelação de sentença não foi julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e pelo Superior Tribunal de Justiça, com base no artigo 595 do Código de Processo Penal, que exclui os fugitivos do direito da apelação: ‘Se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação.’ Pois o Supremo – 21 anos depois de promulgada a Carta – cismou que esse artigo não foi recepcionado pela Constituição. A decisão foi por unanimidade.

Ou seja, para os ministros do Supremo (inclusive Joaquim Barbosa, o ombudsman das massas), um latrocida condenado a 30 anos de prisão é uma pobre vítima da sociedade desigual que, mesmo zombando da lei e fugindo da cadeia, tem o direito de recorrer à própria Justiça da qual escarnece para apelar de sua sentença. Isso mostra a flagrante contradição do ministro Gilmar Mendes: com que moral um juiz poderá exigir do MST que desocupe antes as terras invadidas para só depois pleitear reforma agrária? Se homicidas seriais e estupradores de crianças podem recorrer ao Supremo mesmo estando foragidos, por que um sem-terra não pode recorrer à Justiça como invasor? Por acaso a propriedade privada vale mais do que a vida humana, ministro Joaquim Barbosa? O senhor e seus pares nem precisavam ouvir a ‘voz das ruas’ para saber que essa decisão é absurda – bastava ouvir a lei do bom senso em que a Justiça se assenta.

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Jornalista e sociólogo, Goiânia, GO