Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O inglês não foi proibido

Toda semana o Brasil tem uma polêmica. Chegou a vez do inglês, cujo exame não é mais eliminatório no Itamaraty. Há prós e contras na decisão, mas a imprensa insistiu e deformou a questão. Resumindo os recortes, fica-se com a impressão de que o Itamaraty proibiu o inglês!

Ninguém destacou um viés da fala do ministro Celso Amorim, que presidiu a Embrafilme na década de 1970, dando conta de que outras línguas estão sendo valorizadas. Ele declarou em francês e em espanhol que o inglês fora dispensado da obrigatoriedade. Como não puderam chamá-lo de ignorante, perderam o caminho mais fácil da satanização. Imaginemos que fosse o presidente Lula a fazer a declaração! ‘Não sabe nem português!’, seria o mínimo.

Ponta do iceberg

A questão das línguas é central em qualquer cultura. O inglês é o latim do mundo. Se a pessoa não sabe inglês, mas domina o francês, o alemão ou o espanhol, entre outras línguas européias, ainda consegue sobreviver, estudar, viajar e negociar.

Mas se sabe apenas o português, sentirá na carne as desgraças que afligem um analfabeto. No mundo não entenderá nada, ou muito pouco! Os norte-americanos conhecem bem a situação, pois mesmo seus diplomatas, para o ingresso no ofício, estão dispensados de saber outra língua além do inglês. Como são os donos do mundo, ninguém os critica.

Já no Brasil é fácil de bater. Quem bateu primeiro foram, como sempre ocorrem, os próprios brasileiros. Gostamos muito de praticar o esporte nacional de falar mal de nós mesmos. Nos EUA, onde um espírito prático usualmente rege as coisas, para o Bem ou para o Mal, a imprensa sequer deu destaque à declaração do ministro Celso Amorim, aqui no Brasil tão polêmica.

Conversando com um norte-americano que vive no Brasil, me disse num português, divertido pelo sotaque, mas perfeitamente entendível: ‘Depois eles aprendem, não proibiram estudar inglês’.

Mandarim, árabe, hindu, a maioria da Humanidade fala essas línguas ou ramos dessas línguas. Chineses, árabes e hindus representam mais da metade da população da Terra, atualmente calculada em pouco mais de seis bilhões de pessoas. Uma boa forma de evitar o desemprego é estudar uma dessas línguas.

Evidentemente você não estuda uma língua apenas para obter um trabalho. Quem estuda latim e grego desde os verdes anos, faz isso por gosto, para melhor entender o português, para melhor ensiná-lo, por paixão e por outros motivos, alguns dos quais difíceis de serem externados, pois o inconsciente reina soberano em muitas razões de nossos atos.

O ser humano que vemos e com o qual convivemos é como se fosse um iceberg, do qual só enxergamos o cocoruto. Para onde vai, o que fará nos próximos anos, às vezes nem ele mesmo sabe. Matérias extensas e poderosas, acomodadas e unidas num fundo misterioso, é que lhe determinam a direção.

Função arrasadora

Não vi xenofobia alguma no ato do ministro das Relações Exteriores. Ao contrário, vai democratizar o acesso à carreira diplomática. E é isso que está sendo combatido. O problema no Brasil é outro. Quem ensina está mal remunerado, as escolas estão decadentes, principalmente as públicas, o sistema de administração é ultrapassado e ineficiente, e os governos, quase todos eles, investem pouco e mal em educação e cultura.

Em muitos municípios, onde começam a cidadania e os primeiros passos rumo à integração na Galáxia Gutenberg, educação e cultura não recebem os cuidados que deveriam e merecem, sejam os prefeitos cultos ou incultos, porque esta, aliás, não é a questão.

O problema não é ignorar o inglês. O problema central é ignorar o português. Basta rápida olhada em documentos públicos, cartazes, receitas médicas, petições de advogados, sentenças de juízes, livros, colunas de renomados cronistas, para se avaliar o quanto o Brasil despreza a língua nacional!

Se exigíssemos que todas as autoridades, de qualquer instância, passassem por exames eliminatórios de português, quantos cargos ficariam vagos? Pensando bem, não é uma boa idéia?

Quem escreve bem é porque sabe pensar. E quem não sabe escrever ou tropeça na língua, salvo razões especiais, é porque antes tropeçou na própria cabeça. O conhecimento de uma língua não é apenas técnico. Uma coisa é você aprender inglês para viajar e pedir um sanduíche. Outra, bem diferente, é ler e entender um verso de Shakespeare. Ou as graves reflexões de reis e príncipes em suas peças!

Claude Hagège, do College de France, autor de livros fundamentais como A estrutura das línguas e A crianças de duas línguas, em entrevista à escritora Betty Milan para a Folha de S.Paulo, depois coligida em O Século (Editora Record), declarou:

‘O aprendizado do espanhol é mais importante para um brasileiro do que o do inglês, língua de um povo bem mais distante. A americanização dos brasileiros é um insulto à latinidade’.

Há um tema polêmico sobre o qual há poucas pautas na imprensa brasileira, ainda que nos cadernos culturais especializados: o papel devastador do inglês sobre as outras línguas.

Não se trata de questões inevitáveis, como a dos neologismos, que enriquecem as línguas que os acolhem, desde que não mandem na casa onde chegaram como visitantes. É a opressão que, por razões de comércio, o inglês exerce sobre outras línguas. Também o francês, o chinês, o alemão, o russo e o árabe, em menos escala, fazem coisa semelhante.

Ao expandirem seus domínios, essas línguas acabam por cumprir função arrasadora sobre todas as outras línguas da humanidade, calculadas em torno de seis mil, a maioria delas sem defesa diante de tais invasões.

O Brasil precisa cuidar melhor do português, mas nossa imprensa não parece ter a devida sensibilidade para o tema.