Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O mal de Chagas e
o mal da imprensa

A cobertura da mídia catarinense a respeito dos casos de mal de Chagas registrados no estado mostraram agilidade e correção na prestação de um serviço de saúde pública. Em cima dos fatos, os jornais, emissoras de televisão e de rádio divulgaram as orientações que eram repassadas pelas autoridades em vigilância sanitária. Até aí, nada de mais. Alarmada, a população reagiu no impulso e lotou os postos de saúde em busca de uma certeza que os cientistas e as autoridades sanitárias, tampouco a imprensa, poderiam dar.

O caso começou tímido: cinco pessoas de uma mesma família, os Cabral, teriam bebido, às margens da rodovia BR-101, caldo-de-cana contaminado com urina de ratos. Diagnóstico: leptospirose. Prontamente, a imprensa divulgou, mas a verdade dos jornais não se confirmava nos exames laboratoriais.

Autoridades da área da saúde fizeram nova tentativa de diagnóstico: hantavirose, um mal temido pela violência com que abate seus pacientes. Dos ratos urbanos, a suspeita passou aos ratos do campo. Mas, mesmo com um anunciado laudo positivo do Instituto Adolfo Lutz, novamente nada feito. O mal haveria de ser outro.

A certeza que a população buscava – e a essa altura já lotava os postos de saúde com mais de 18 mil cadastros e 12 mil exames realizados – só veio em duas semanas. Até este ponto, a família Cabral, primeira a sofrer com a contaminação, já havia perdido três integrantes: a avó, um bebê e uma menina de nove anos de idade. Outras duas pessoas morreram e dezenas foram internadas com sintomas do mal. O diagnóstico causou surpresa: mal de Chagas.

A céu aberto

A surpresa pode ser compreensível, mas não aceitável. Como o Vale do Itajaí, em Santa Catarina, terra de exemplos germânicos da boa administração, poderia contaminar-se desta forma? Chegou-se a divulgar que não havia por aqui o Triatoma, o popular inseto barbeiro. Tentativa malsucedida de mascarar o que acontecia: o barbeiro já estava aqui antes de qualquer imigração. São conhecidas ocorrências do bichinho do sul dos Estados Unidos até a Patagônia.

Descoberta a doença, todos os demais pacientes receberam tratamento e a população, orientação. Sintomas e tratamento divulgados resultaram em maior tranqüilidade e acerto. O foco principal de contaminação, porém, permaneceu intacto nessas duas semanas. O Barracão da Penha, às margens da BR-101 entre os municípios de Navegantes e Penha, anunciado na segunda-feira (28/3), foi citado por 94% dos casos confirmados. O mesmo local onde aconteceu a primeira contaminação, aquela da família Cabral.

Ainda assim, a Vigilância Sanitária vasculhava canaviais e a imprensa local perseguia fantasmas. Nada de investigação. Repórteres só voltaram ao local acompanhados da Vigilância Sanitária para se certificar que um depósito de cana a céu aberto, nos fundos do barracão e próximo à mata era o foco de todas as contaminações.

Quem responde?

Se a cobertura regional primou pelo bom serviço, embora ingênuo, o pior aconteceu em nível nacional, onde a pauta foi considerada apenas uma curiosidade. No ano de 2004, por exemplo, mais de 770 mil turistas vieram a Balneário Camboriú, dos quais 72,85% chegaram de automóvel.

Os dados da Santa Catarina Turismo S.A. (Santur) podem preocupar. O número de turistas que passaram pela rodovia e que podem ter levado a doença (que não é contagiosa, mas precisa ser tratada) para outros estados e países justifica a importância nacional da pauta.

Mas, ao contrário do que se esperava, o Fantástico, da Rede Globo, a registrou rapidamente como uma curiosa pauta regional. Os noticiários da semana fizeram o mesmo. Por incrível que pareça, o momento mais esclarecedor desta pauta no domingo (27/3) ocorreu no programa Domingo Legal, do SBT, quando Gugu Liberato entrevistou uma pesquisadora do mal de Chagas.

Agora começam a pipocar casos de Chagas no Amapá, contaminados pelo açaí, e outros virão. Não se trata de presságio ou mau agouro. A contaminação da doença de Chagas por via oral não é realmente novidade no Brasil. Desde 1968 já se registram casos, como noticiou a Fundação Oswaldo Cruz.

Não se divulgam esses casos na imprensa pelo mesmo motivo que não se dedicam recursos suficientes à pesquisa da cura desse mal. Não há interesse econômico envolvido diretamente. É considerada uma causa social – no português bem claro, doença de pobre, que não tem dinheiro para sustentar os grandes laboratórios farmacêuticos.

A rapidez na cobertura e a prestação de serviços, neste caso, não foi acompanhada de uma visão interpretativa dos fatos, mas de um deslumbramento romântico do jornalista frente à ciência.

O mal de Chagas foi causado pela falta de higiene no armazenamento da cana-de-açúcar que virou caldo. Não se trata, portanto, de fatalidade, mas de falta de fiscalização. Essa deficiência já matou cinco pessoas e não se podem creditar essas perdas ao acaso: alguém deve responder por elas. Mas essa notícia os jornais ainda não publicaram.

******

Jornalista, professora do curso de Jornalismo da Univali-SC e pesquisadora do Monitor de Mídia