Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O mito da caverna jornalística

O Mito da Caverna, de Platão, fala sobre um grupo de prisioneiros que, desde o nascimento, vivem acorrentados em uma caverna e passam o dia todo olhando para uma parede iluminada por uma fogueira. Na parede, são projetadas imagens (sombras) de formas corriqueiras do nosso cotidiano: objetos, pessoas, animais etc. Os prisioneiros interpretam as projeções como verdadeiras, adquirindo uma visão distorcida do mundo.

Certo dia, um prisioneiro consegue escapar, atingindo o mundo externo. Lá, ele descobre que as coisas que conhecia não são reais. Ao retornar à caverna, seus confrades não acreditam no que diz. Suas ideias, absurdas demais, não poderiam indicar a verdade. O fugitivo é ridicularizado, chamado de louco. Caso continuasse com aquela baboseira de “mundo real”, seus colegas tratariam de matá-lo.

O Mito de Platão é um dos primores da filosofia. Serve de insumo para diferentes áreas do conhecimento. Apliquemos esse conceito à realidade jornalística. Imaginemos o público dos veículos de comunicação representando os prisioneiros da caverna. Num dia de trabalho qualquer, um jornalista decide fazer uma matéria sobre a corrupção na Assembleia Legislativa de seu estado. Proativo, ele não se contenta com os discursos fervorosos dos deputados sobre negativas de envolvimento em qualquer escândalo.

Decide investigar. Vai atrás de fontes plausíveis, na sociedade civil e na polícia. Descobre provas irrefutáveis de que os casos de corrupção, de fato, ocorreram. No dia seguinte, a matéria é publicada. A repercussão tempestuosa na imprensa pautou, inclusive, outros veículos de comunicação, quando estes antes apenas faziam o trivial: publicavam depoimentos vazios de parlamentares mentirosos.

A realidade não existe

O jornalista do exemplo conseguiu sair da caverna. Negou a realidade que se apresentava a ele. Como resultado – e diferentemente do Mito, de Platão – as pessoas acreditaram em sua versão. Mas nem sempre acreditam. Os críticos, frequentemente, afirmam que a mídia busca mostrar a verdade que lhe convém. Não há como negar que alguns veículos procuram manipular certos acontecimentos a fim de prejudicar pessoas que desejam fora da cena.

Uma pessoa que lê uma matéria poderá discordar da forma como ela foi escrita. Outra dirá que o texto apresentou os fatos de forma isenta, negando qualquer tentativa de indução. Platão não teria percebido, mas o jornalismo tratou de atualizá-lo: a realidade não existe, mesmo que o trabalho de comunicação busque a objetividade. Tudo é interpretação a respeito de um tema. Em suma, onde há humanidade, há discordância.

O objetivo de jornalismo é mostrar a realidade, sim, da forma mais isenta possível. Isenção, todavia, é algo intangível. Quando o jornalista sair da caverna e retornar com uma reportagem, parte do público desejará desacreditá-lo, pedirá sua cabeça. Mas ele cumpriu seu papel na história do “mito jornalístico”, ainda que não tenha agradado a todos. Da mesma forma como a projeção de um objeto pela fogueira é distorcida, sempre haverá distorção na arte de comunicar. Cumpre a cada um diferenciar as bem-intencionadas das mal-intencionadas.

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Gabriel Bocorny Guidotti é jornalista e escritor