Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O olhar da grande distinção

É bastante ponderável o argumento de Marcelo Beraba, ombudsman da Folha de S.Paulo, no sentido de que ‘por mais que se entenda o interesse jornalístico num empreendimento econômico como a dimensão da nova Daslu e com suas características de opulência e ostentação, o volume de papel gasto pela Folha é um exagero’ (12/6/2005). De fato, apesar das nuvens negras que a crise política projeta para o país, a inauguração do novo megatemplo do consumo conspícuo foi uma espécie de ‘atrator estranho’ para as atenções da mídia nacional e, até mesmo, estrangeira.


Mas não há como deixar de reconhecer as razões Gilberto Dimenstein em sua coluna na Folha do mesmo dia em que Beraba fazia a sua crítica: ‘Quem não entende a Daslu não entende São Paulo’. O articulista fazia a defesa, bastante sensata, do metropolitanismo de São Paulo:




‘As melhores cidades do planeta são aquelas que atendem a todos as tribos: boêmios, homossexuais, religiosos, punks, artistas, empresários, socialites, homens de negócios e intelectuais. Atende pessoas interessadas em andar pela Vila Madalena, com roupas artesanais, e milionárias, deslumbradas, dispostas a pagar milhares de reais por um vestidinho’.


Um shopping-center que exibe o máximo da sofisticação em termos de consumo representa de fato mais empregos e impostos para a cidade, logo, é um bom negócio.


O comentário de Dimenstein veio somar-se aos muitos que ocuparam páginas e mais páginas da imprensa carioca e paulista a propósito da inauguração da megaloja de luxo paulista [veja remissões abaixo]. Nos 20 mil metros quadrados da Daslu, especulava a colunista Ana Cristina Reis, ‘melhor do que o balcão de perfumes para experimentar – 300 tipos – só a bancada de barcos, lanchas e veleiros, em tamanho pequeno, para você escolher e encomendar o grande (O Globo, 13/6/2005)’. E o repórter de moda do Sunday Times só fazia dizer ‘amazing, amazing!’ É mesmo ‘espantoso’ um jeans da D&G por 5 mil reais ou um jogo de lençóis de algodão egípcio, 4.800 reais.


Idade e memória


São inúmeros os detalhes e as pequenas histórias, cada jornalista pôde apresentar o seu estoque diferenciado. Uma, porém, merece observação mais demorada, que talvez leve a pensar um pouco mais detidamente sobre a natureza dos bons negócios, que nos fazem também ‘lembrar o Titanic‘, segundo o comentário de Ana Cristina Reis. É que, na Daslu, ‘uma copeirinha abre a porta do banheiro para você. Claro! Abrir porta é totalmente muito anticlímax’.


Até aí, nada demais, considerando-se a sofisticação da megaloja. Mas há um detalhe especial, não registrado pela colunista: as copeirinhas, na porta do banheiro ou em qualquer ponto do espaço da Daslu, não podem fazer contato visual com nenhum cliente.


A interdição é, no mínimo, uma curiosidade antropológica, levando-se em conta uma certa analogia zoológica. É que, no reino dos grandes gorilas africanos, nenhum súdito do rei-macaco, macho ou fêmea, pode fazer contato visual com o soberano, O olhar do chefe do grupo é uma das principais técnicas de dominação, de modo que fixá-lo diretamente implica uma confrontação a ser testada em combate, cujo resultado só pode ser a expulsão ou a morte do desafiante.


No caso da copeirinha, a tentação aqui é de interpretar a interdição da mirada como uma espécie de precaução, por parte da gerência da megaloja, contra qualquer olhar que pudesse ser tomado como crítico ou desafiador ao poder inerente aos megaconsumidores. Isto não é, aliás, nenhuma novidade para os jornalistas de alguma idade e alguma memória. Quem trabalhou na Bloch Editores presenciou – ou pelo menos ouviu falar – de demissões provocadas por um mero cruzamento de olhares entre um assalariado e seu patrão num dia particularmente tenso.


Reconhecimento distintivo


O exemplo da copeirinha, entretanto, pode ter muito a ver com um fenômeno que o filósofo alemão Peter Sloterdijk chama, num livro recente (O Desprezo das Massas, Editora Estação Liberdade), de ‘problema objetivo de reconhecimento’, situado entre a comunicação vertical (hierárquica, vertical, ofensiva) e a comunicação horizontal (igualitária, adulatória). Para o filósofo…




‘…na fabricação de discursos sobre os atuais sistemas sociais e suas populações, as elites e as massas, os iguais e os mais iguais, os muitos e os muito muitos, já se decidiu, esteja-se ciente ou não, se quer desenvolver ou ofender um grande número de pessoas, ou adulá-las e seduzi-las. O que na modernidade se percebe nas lutas culturais e nos combates partidários ideológicos, na maior parte das vezes não passa de disputa entre ofensores e aduladores’.


Entenda-se: na luta pelo reconhecimento social (o reconhecimento, do mesmo modo que a atenção, seria uma fonte cujo valor está correlacionado com sua escassez), a distinção social situa-se no plano da comunicação vertical, separando elite de massa. ‘Reconhecimento recusado chama-se desprezo – assim como contato físico recusado e repudiado se chama nojo’, diz Sloterdijk.


No caso da megaloja, impor a comunicação vertical (a interdição hierárquica do olhar) significa pactuar uma comunicação horizontal (adulatória) com a elite consumidora, fazendo-a distinguir-se da massa – ‘esse pseudo-sujeito com o qual não se pode travar relações sem trazer à baila um elemento de desprezo’ – representada pela copeirinha.


Ao pagar 5 mil reais por um jeans ou mesmo 30 reais por uma hora de estacionamento, o que de fato se está comprando é um reconhecimento distintivo. No fundo, embora de maneira não tão explícita, a imprensa sabe disso, razão pela qual se gastou tanto papel com a inauguração de uma loja de luxo.


Ambivalência perigosa


Resta, porém, uma questão incômoda para esta hipótese: não foi sempre assim? Não houve sempre na hierarquia das classes sociais um violento esforço de distinção entre elite e massa, e de tal maneira que a adulação midiática e culturalista da massa pelas elites poderia ser caracterizado como um ‘desprezo invertido’?


A resposta é afirmativa, mas uma notícia da semana passada lança uma luz nova sobre a questão: segundo o índice Merrill Lynch, o número de milionários (pessoas com mais de 1 milhão de dólares investido) no Brasil passou de 92 mil em 2003 para 98 mil, em 2004.


Ou seja, está aumentando o fosso da desigualdade social, cada vez mais notável nos espaços urbanos, ao mesmo tempo em que parece crescer a reversão violenta das massas periféricas sobre os detentores de bens de qualquer espécie.


Certo, a Daslu é excelente negócio para a metrópole (e também para a mídia, que se regozijou com a multiplicação dos anúncios), mas é claro sintoma da perigosa ambivalência do ‘choque de capitalismo’ tão sonhado pelos nossos velhos e novos ricos.

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Jornalista, escritor, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro