Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O papa, a excomunhão e o aborto

A Igreja parece disposta a declarar excomungados os políticos católicos que votarem a favor do aborto. Seria uma forma de inibir o processo que já levou países de tradição católica, como Portugal, Itália, Espanha, Polônia e França, a legislarem favoravelmente à ‘interrupção voluntária da gravidez’.

O eufemismo faz parte desse processo. O substantivo ‘interrupção’ e o adjetivo ‘voluntária’ tornam a proposta conceitualmente aceitável. Reduzir a intervenção do papa contra o aborto ao seu conservadorismo é ignorar como a manipulação verbal pró-abortista, de que a mídia se torna eco, atrapalha a compreensão dos elementos em jogo.

Ratzinger é conservador, sim, mas falar contra o aborto não é prerrogativa da postura retrógrada. Independentemente dos motivos de caráter religioso, pode-se afirmar que, do ângulo psicológico, mãe alguma se sente feliz ao tirar a vida de um filho, mesmo no início da gravidez. Pode-se alegar também que o lucrativo negócio das clínicas de aborto clandestinas simplesmente se torna um lucrativo negócio legalizado, o que não resolverá o grave problema social.

Excomungar talvez seja o último recurso da Igreja perante o modo como seus argumentos têm sido ignorados pelos próprios católicos. O professor Luiz Felipe Pondé traduz em miúdos a advertência do papa: ‘Bento XVI está dizendo ‘Você, deputado católico, honre o sentido de ser católico’.’ (Estado de S. Paulo, 18/03/2007).

Políticas sociais incapazes

O presidente Lula (católico) afirmou recentemente sonhar com ‘que as pessoas tenham uma educação tão perfeita que não precisem ficar grávidas sem desejar’. Mulher nenhuma ‘precisa’ ficar grávida sem desejar. A ‘educação perfeita’ nos ajudaria a analisar o aborto a partir de múltiplos pontos de vista, entre eles o do feto, cuja existência, mesmo longe da vista, não é ponto desprezível.

Leiamos o art. 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente: ‘A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.’ Para legalizar o aborto será necessário reescrever esse texto.

Argumenta-se a favor do aborto: para que permitir o nascimento de crianças cujo desenvolvimento sadio e harmonioso não está garantido? Caberia, portanto, propor nova redação para esse artigo do ECA: ‘A criança tem direito a não nascer, caso as políticas sociais sejam incapazes de promover condições dignas de existência’.

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br