Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O que os ombudsmans piauienses não dizem sobre si mesmos

Existe uma clara relação de disputa por poder no modo como se configura o mundo jornalístico. Na repercussão entre os jornalistas do caso das quatro meninas que sofreram estupro coletivo na cidade de Castelo do Piauí, localizada cerca de 190 km ao norte da capital, Teresina, observa-se o que o sociólogo Nobert Elias, juntamente com John Scotson, cunhou em sua obra Os estabelecidos e o outsiders, publicada em 1965 e mais atual do que nunca.

Num estudo etnográfico em uma pequena cidade ao sul da Inglaterra, de nome fictício Winston Parva, os pesquisadores observaram dinâmicas sociais de poder entre grupos de moradores antigos (os estabelecidos) e os novos moradores, principalmente imigrantes e descendentes de imigrantes, estigmatizados e rejeitados pelos estabelecidos.

Os estabelecidos são os grupos ou indivíduos que ocupam posições de prestígio e de poder em uma comunidade: eles se autopercebem e são reconhecidos como uma “boa sociedade”, mais poderosa e melhor. É uma combinação singular de tradição, autoridade e influência. Os outsiders, por outro lado, são justamente o grupo de pessoas que se encontra totalmente fora deste tipo de situação.

Nas dezenas de postagens de jornalistas com críticas à cobertura de outros meios comunicação (nunca uma autocrítica) à tragédia, perpassam elementos que dão a entender que os estabelecidos – principalmente os profissionais de meios de comunicação que atuam há muitos anos no mercado, como os portais Cidade Verde, O Dia e G1 Piauí (este último, mais jovem, porém com o suporte da emissora global que garante aos jornalistas do meio um suposto “prestígio” obtido em associação com o nome da Rede Globo) – se autopercebem como detentores de superioridade social e moral no campo do jornalismo. Jornalistas de novos meios de comunicação seriam então os outsiders, e aí eu incluo o portal O Olho – um dos mais atacados em críticas de jornalistas e com seis meses de existência no mercado.

Há nos jornalistas do grupo de estabelecidos o que Nobert Elias chamou de um grau de coesão e um carisma grupal distintivo, já que todos se conhecem e já têm estabelecido seus lugares nas relações sociais. Os outsiders, por outro lado, são submetidos à situação de exclusão e a principal ferramenta para isso é a “fofoca”, ou seja, “as informações mais ou menos depreciativas sobre terceiros, transmitidas por duas ou mais pessoas umas às outras”. É uma tentativa de controle social, de se criar num meio de comunicação um carimbo (no caso, de “sensacionalista”), como se o mundo fosse unidimensional.

Para o autor, a exclusão e a estigmatização dos outsiders pelo grupo estabelecido eram armas poderosas para que este último preservasse sua identidade e afirmasse sua superioridade, mantendo os outros firmemente em seu lugar. Cito o caso dos jornalistas, mas a dinâmica estabelecidos-outsiders certamente se aplica a diversos estratos sociais, inclusive entre médicos, advogados, garis, dançarinos… etc.

Jornalistas entranhados de ódio

O mundo do jornalismo se move por eventos cotidianos e quebras de normalidade. As tragédias, de tempos em tempos, chocam e levam a reflexões sobre o modo de estruturação da sociedade.

Em um momento em que o Brasil vive com chagas abertas de ódio nas redes sociais motivadas pelo radicalismo ideológico – o que o sociólogo Manuel Castells refletiu recentemente como sendo a verdadeira face do brasileiro: “Não é um povo simpático, é um povo que se mata” –, o modo como os jornalistas piauienses refletem sobre a própria produção e conteúdo reverbera ódio, ranço e toda a sorte de julgamentos morais e tentativas de se impor em patamares simbolicamente superiores que esvaziam as próprias críticas.

A lógica do “atacar como defesa” pode ser útil na guerra, mas no jornalismo não faz muito sentido. Como o jornalismo pode evoluir como modo de conhecimento – não apenas de produzir, mas de transmitir (e recriar) conhecimentos de outras esferas institucionais – se os próprios acadêmicos da área, professores, pesquisadores, fazem críticas apenas como leitores de manchete? Como criticar algo não lido, não analisado? Como falar de sensacionalismo se sua motivação é se unir a um grupo homogêneo e numericamente superior com a motivação principal de se sentir melhor que um outro grupo que pensa e age diferente?

Um dos profissionais publicou em sua página no Facebook críticas através de termos recheados de significados negativos (“bizarrice”, “lixo”), o fato de alguns meios de comunicação – no caso, portais – terem publicado imagens borradas das jovens violentadas em Castelo do Piauí. A contradição é que o meio de comunicação onde o jornalista trabalha também publicou a mesma foto. Assim como ele, outras dezenas de jornalistas piauienses fizeram o mesmo: olharam para o trabalho alheio, fizeram críticas virulentas e não observaram a si mesmos dentro do sistema das empresas em que trabalham.

Jornalistas, que se dizem tão oprimidos por baixos salários e condições ruins de trabalho, encontram – quem diria – alegria na opressão.

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Sávia Lorena Barreto Carvalho de Sousa é jornalista e mestre em Comunicação