Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O show não pode parar…

Na semana passada, os brasileiros assistiram a um tipo de novela que virou líder de audiência nos veículos de comunicação; ela retratou, sem retoques, um drama dos nossos dias – a violência sem limites. Uma menina de quinze anos de idade foi executada, sem dó nem piedade, com transmissão ao vivo e em horário nobre. O seu martírio foi acompanhado em capítulos, bem ao gosto de uma platéia acostumada a novelas fictícias, mas que, aos poucos, está se habituando a outro tipo de ‘atração’: histórias reais, dramáticas, que apresentam como protagonistas, de um lado, gente desequilibrada e, do outro, vítimas indefesas. Os ‘enredos’ imitam outro programa famoso – o Big Brother –, mas com uma diferença: nesse tipo de ‘programa’ não existe autor, muito menos diretor – tudo é feito de improviso, principalmente por quem deveria trazer o script de casa, revisado e decorado…

Não pretendo ser dono da verdade, muito menos saber mais do que ninguém. Mas diante de tantos absurdos, de tantos equívocos e aberrações, na condição de cidadão que paga seus impostos em dia, me concedo o direito de externar minha indignação. O script a que me refiro é fácil de ser explicado. Numa situação trágica como essa, da execução da menina Eloá, policiais e jornalistas deveriam saber qual o papel que deveriam desempenhar, pois é evidente que eles têm o dever de conhecer seus ofícios…

Limitações e descaso

Não foi o que aconteceu. Assistimos a uma imprensa que, em nome da liberdade de informação, pisou em valores consagrados, fez pouco caso da ética e do bom-senso com o único objetivo de atingir a maior audiência possível. Certamente, os anunciantes ficaram satisfeitos, certamente tiveram retorno do seu dinheiro… Ao mesmo tempo, assistimos a uma polícia que deveria comandar as ações, fazer todo tipo de concessão, tolerando intromissões exibicionistas e descabidas. Isso precisa ter um fim, a polícia precisa exercer o papel destinado a ela nas democracias de verdade.

Não consegui entender o motivo das concessões. É inaceitável também que uma refém retorne ao cativeiro, seja pelo motivo que for, ainda mais com o terrível agravante de tratar-se de uma adolescente. Não vou citar outros absurdos, as regras para estes casos devem ficar restritas aos manuais que tratam do assunto, mas é óbvio que elas não foram observadas como deveriam ser.

Existem, entretanto, alguns fatos que precisam ser melhor explicados, como aquele de um dirigente de um clube de futebol ser chamado para negociar com o seqüestrador… Onde esse cidadão adquiriu conhecimento para desempenhar esse papel? Mais: um conhecido perito foi convocado para emitir opiniões; falou bastante, ditou cátedra, mesmo estando distante dos acontecimentos… Faço esses comentários com tristeza. Sei das limitações das nossas polícias e o descaso a que elas estão relegadas.

Práticas injustificáveis

As críticas (justas) que estão sendo feitas ao desempenho da polícia paulista precisam, também, ser repartidas com os veículos de comunicação. Sei que é difícil criticar a imprensa. Quem se atreve a fazê-lo é imediatamente taxado de ‘saudosista da repressão’ e de outras bobagens do gênero que dizem para fugir de responsabilidades que precisariam assumir quando acontecem tragédias como essa que vitimou a infeliz menina. Qualquer crítica é respondida com o surrado argumento da liberdade de imprensa levada às últimas conseqüências, liberdade que muitos julgam ser algo divino, quase um axioma… É difícil um debate dessa natureza, pois os jornalistas têm em suas mãos canhões para dizerem o que quiserem, enquanto outros precisam pagar (caro) para tentar colocar as coisas nos devidos lugares…

Está na cara que alguns profissionais da imprensa precisam rever suas ações. Está na cara que eles precisam entender que a ‘guerra da audiência’ não pode ser vencida a qualquer custo. Eles precisam entender – definitivamente – que um telefone, quando é usado por um seqüestrador para dar uma ‘exclusiva’ para um repórter, poderia estar sendo utilizado por policiais que estão ali para cumprir uma difícil e perigosa missão. Eles precisam entender, também, que nos currículos das academias de polícia, existem disciplinas que não fazem parte dos cursos de jornalismo, entre elas o uso de técnicas consagradas em casos de seqüestro, que acabam sendo reveladas pelas coberturas ‘ao vivo’ que, logicamente, podem ser vistas pelos seqüestradores…

Esse tipo de procedimento precisa ser discutido, a população precisa saber que houve equívocos de todas as partes, mas isso não pode mais acontecer. O Brasil atingiu uma importância no cenário político e econômico que não justifica mais certas práticas. Todos precisam saber qual o seu lugar… Todos precisam ser respeitados, mas ninguém deve insistir em fazer o que não sabe…

Ex-campeões de audiência

Concluindo, mais uma vez lanço um apelo: as polícias brasileiras precisam ser cada vez mais treinadas e equipadas para agirem em casos graves, como esse a que o país assistiu. Além de treinamento e equipamento, os policiais precisam, também, ter um tratamento digno. No nosso país, existe algo incompreensível. Quando assisto a um julgamento no tribunal, vejo advogados, promotores e juízes serem reconhecidos. São, com justiça, bem remunerados e respeitados. Entretanto, não consigo entender por que somente os que estão na linha de frente, como os policiais, cara a cara com a bandidagem, não têm o mesmo tratamento. Moram, na sua grande maioria, em lugares deprimentes, sofrendo todo tipo de pressão.

Não vejo ninguém ousar invadir o trabalho de um advogado, de um promotor, muito menos ‘sugerir’ isso ou aquilo para um juiz. Quanto aos policiais, não é preciso muito esforço, todos puderam ver: gente falando diretamente com o seqüestrador, gente ‘emitindo’ laudo, gente exigindo o uso de atiradores de elite, sugerindo o momento da invasão e todo tipo de intromissão, como se a polícia pudesse ser substituída por gente sem qualificação para tal…

PS: A execução da Eloá será esquecida da mesma maneira como foi o menino arrastado pelo automóvel, a criança que foi jogada pela janela, os meninos da Candelária ou o seqüestro do ônibus com a morte da refém. São ‘programas’ que serão lembrados como ex-campeões de audiência… Tudo será esquecido, o show não pode parar…

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Policial federal aposentado, formado em Jornalismo e Direito