Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O silêncio é sagrado

Pior do que o silêncio da mídia sobre a aprovação pela Câmara da concordata celebrada entre Brasil e Vaticano, contrariando os desejos da própria população católica (que, consultada em pesquisa, foi em maioria não favorável à sua existência), foi o silêncio sobre o acordo que possibilitou tal aprovação, feito por baixo dos panos, escondido dos olhos do povo, como se os parlamentares não estivessem lá para representá-lo. Com exceção de artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, o projeto de lei usado pelo lobby evangélico como moeda de troca para sua votação favorável à Concordata continua sendo assunto que diz respeito apenas aos que participaram da manobra.

Alguns outros poucos órgãos informaram que a Câmara ‘regulamentou a liberdade religiosa’, no máximo mencionando que o projeto foi apresentado como resposta á concordata católica. O portal Terra teve, é verdade, a imparcialidade de informar também que a Associação dos Magistrados Brasileiros opõe-se a ambos os projetos, e não descarta a possibilidade da impetração de Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal caso tais projetos sejam aprovados. O que não se viu foi qualquer palavra sobre a mudança abrupta de atitude dos deputados, que aparentemente tinham oposições à concordata católica não porque ela ferisse o imperativo constitucional de separação entre Igreja e Estado, mas porque os benefícios outorgados aos católicos não se estendiam aos outros credos.

A mídia, tão afeita a cobrir o último escândalo político, não deu atenção às intenções do deputado Ivan Valente (PSOL) de contestar todo o processo de aprovação do projeto de Lei das Religiões, coalhado de acontecimentos suspeitos, como a afirmação do presidente da sessão de que houve um acordo unânime para que se colocasse o projeto em regime de urgência (afirmação desmentida por Valente, que diz não ter sido sequer consultado sobre o assunto) e a manobra dos parlamentares para que o projeto passasse por pelo menos uma comissão (no caso, a de Trabalho, Administração e Serviço Público) com poderes para enviá-la ao plenário em regime de urgência, diminuindo a possibilidade de discussões e emendas.

Concessão de privilégios

Toda a mobilização contrária tem sido feita através da sociedade civil (aquela que conseguiu se informar sobre o fato, bem entendido), através de comunidades no Orkut como Contra o Preconceito aos Ateus, Neo-Ateus e websites como http://leidasreligioes.divulgue.info/ onde é possível, com um clique, enviar e-mails de protesto aos senadores. O grosso da população continua sem saber que a mesma ala parlamentar que, no dia da votação, publicou anúncios na mídia impressa posicionando-se contra o acordo com o Vaticano, era a mesma cujos membros proferiam no dia da aprovação frases como ‘Está tudo combinado. Nós aprovamos o deles e eles aprovam o nosso.’ E os discursos inflamados a respeito de laicidade do Estado ficaram no passado, afinal só faz mal desrespeitar um princípio constitucional quando este desrespeito não convém aos interesses do partido.

O Projeto de Lei 5.598/2009, de autoria do Deputado George Hilton, aprovado a toque de caixa (registradora, como bem frisou o deputado Chico Alencar) na Câmara, e que ganhou no Senado o número 160/2009, é basicamente uma cópia do texto da Concordata, com alguns artigos a mais. A ementa do projeto engana: diz ela que ele ‘dispõe sobre as Garantias e Direitos Fundamentais ao Livre Exercício da Crença e dos Cultos Religiosos, estabelecidos nos incisos VI, VII e VIII do art. 5º e no § 1º do art. 210 da Constituição da República Federativa do Brasil’

No entanto, com exceção de um artigo regulamentando a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares, nada se observa no texto da lei a respeito do livre exercício de crença e de culto que já não esteja previsto no ordenamento jurídico brasileiro, ou que necessite de futura regulamentação. Todos os artigos que tratam do assunto são redundantes; e os que introduzem disposições realmente novas ao Direito pátrio tratam não da proteção dos direitos fundamentais de liberdade religiosa, e sim, da concessão de privilégios, em sua maioria inconstitucionais, às organizações religiosas.

Dispositivo lesivo

Entre os artigos mais preocupantes para os que prezam pela separação entre Estado e Igreja, encontra-se o 7º, que dispõe:

‘A destinação de espaços para fins religiosos poderá ser prevista nos instrumentos de planejamento urbano a ser estabelecido no respectivo Plano Diretor.’

A redação é menos pior do que a do projeto original, que determinava que o Estado se empenharia na destinação de espaços para cultos religiosos, devendo prever tais áreas em seu Plano Diretor. No entanto, dar a possibilidade aos Municípios para que reservem áreas em seu Plano Diretor destinadas ao estabelecimento de locais de culto já é o suficiente para configurar violação ao Art. 19, I e III, da Constituição Federal, que determinam:

’19 – É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.’

A inconstitucionalidade da disposição, portanto, é flagrante: ou alguém tem dúvidas de que reservar áreas municipais (bens públicos, portanto) para entidades religiosas é manter com elas relação de aliança? A lesividade do dispositivo salta mais ainda aos olhos quando se pensa no número de organizações religiosas presentes na mesma cidade. Não é nem mesmo necessário incluir na conta aqueles grupos minoritários que não se encontram presentes em todos os municípios: hindus, muçulmanos, wiccanos e mesmo judeus. Pode-se presumir que em todo Município se encontrará ao menos representantes da igreja católica romana, da umbanda e candomblé, do espiritismo kardecista, dos Testemunhas de Jeová, e das diversas denominações evangélicas. Ainda que se ignore que existem diferenças radicais entre alguns grupos protestantes e se considere a todos como uma coisa só, o Município, se decidir reservar áreas para locais de culto, terá que fazê-lo para, no mínimo, seis diferentes grupos.

Inviolabilidade do direito à igualdade

Ou será que haverá a prerrogativa de reservar áreas somente para alguns e não para outros? Instituir-se-ão ‘cotas’ para tais espaços, proporcionais ao número de membros pertencentes àquela religião? Ao reservar áreas, o Município automaticamente determina que o espaço daquele culto será somente aquele, e impede o estabelecimento de outros templos em outros locais, configurando dupla inconstitucionalidade? Ou, além do privilégio de ter áreas a eles destinadas pelo Poder Público, as organizações religiosas ainda poderão adquirir terrenos com recursos próprios? O artigo deve ser lido tendo em mente o fato de que ‘nenhum edifício, dependência ou objeto afeto aos cultos religiosos, observada a função social da propriedade e a legislação própria, pode ser demolido, ocupado, penhorado, transportado, sujeito a obras ou destinado pelo Estado e entidades públicas a outro fim, salvo por utilidade pública, ou por interesse social, na forma da lei’.

À primeira vista, nada de preocupante. Exceto quando se percebe que o artigo não contempla a necessidade pública, uma das hipóteses que autorizam a desapropriação pelo Estado, e que não deixa margem alguma para a penhora para o pagamento de dívidas, mesmo as de natureza fiscal ou alimentar. Há de se perguntar o que autoriza a instituição desta distinção entre brasileiros, colocando os responsáveis por entidades religiosas em posição privilegiada em relação aos demais cidadãos, a ponto de vilipendiar de uma tacada só três dispositivos constitucionais: o Art. 19, III (que proíbe a criação de distinções ou preferências entre brasileiros), o Art. 5º, caput (que garante a todos os brasileiros a inviolabilidade do direito à igualdade), e seu inciso XXIII (que diz que a propriedade atenderá a sua função social).

‘Violações, desrespeitos ou usos indevidos’

O Art. 18, ao estabelecer que ‘a violação à liberdade de crença e a proteção aos locais de culto e suas liturgias sujeitam o infrator ás sanções previstas no Código Penal, além de respectiva responsabilização civil pelos danos provocados’, preocupa não apenas aqueles dados ao raciocínio crítico, mas qualquer um com senso de humor, quando lido em conjunto com o Artigo 6º, que também é suficiente para gerar preocupações:

‘Ficam asseguradas as medidas necessárias para a proteção dos lugares de culto das instituições religiosas e de suas liturgias, símbolos, imagens e objetos culturais, tanto no interior dos templos como nas celebrações externas, contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo.’

Esqueçamos por um momento que os locais de culto e suas liturgias já encontram-se protegidos pela legislação penal contra qualquer forma de violação e que há que se avaliar a conveniência de, em um país com a segurança pública em crise, utilizar aparato estatal para proteger instituições que raramente (poder-se-ia dizer mesmo quase nunca) sofrem ataques.

O Art. 6 é importante pois, se lido em conjunto com o Art. 18, deixa claro que a ‘violação à liberdade de crença e aos locais de culto e liturgias’ a que este último se refere são as ‘violações, desrespeitos ou usos indevidos’ de ‘liturgias, símbolos, imagens e objetos culturais tanto no interior dos templos como nas celebrações externas’. No entanto, axioma conhecido no mundo jurídico declara que a lei não contém expressões inúteis. As condutas previstas no Art. 6º já são tipificadas como criminosas e a reparação civil por danos sofridos é direito de qualquer pessoa, física ou jurídica.

‘Templo é dinheiro’

Está aberta a porta, portanto, para que ‘pitbulls de Deus’ utilizem o Art. 18 independentemente para classificar como ‘violação à liberdade de crença e aos locais de culto e liturgias’ toda e qualquer crítica a sua religião. Precedentes existem, como o incentivo da Igreja Universal para que fiéis ajuizassem, em 2008, ações judiciais (muitas com iniciais idênticas, o que comprova que foram entregues prontas a seus autores) contra um jornal paulistano após reportagem do periódico sobre o crescimento financeiro da Igreja…ou o processo criminal contra o blogueiro Alberto Murray Neto, acusado de vilipêndio a objeto de culto simplesmente por ter postado na internet uma imagem do Cristo Redentor usando um colete à prova de balas, em referência à violência urbana que assola o Rio de Janeiro.

São tantos artigos redundantes, explicitando o que já está previsto na Constituição, que tem-se a impressão de que quase todo o resto é uma cortina de fumaça para a aprovação do Art. 14, aquele que determina que:

‘Às pessoas jurídicas eclesiásticas e religiosas, assim como ao patrimônio, renda e serviços relacionados com as finalidades essenciais, é reconhecida a garantia de imunidade tributária referente aos impostos, em conformidade com a Constituição Federal.’

O problema é que, se agir ‘em conformidade com a Constituição Federal’, o legislador está autorizado apenas a exercer a imunidade tributária em relação a templos. A definição de templo tem sido esticada para englobar muita coisa, de emissoras de rádio a aquecedores para a residência de missionários estrangeiros. O que a lei tenta fazer é, com uma canetada, resolver algo que os tributaristas discutem até hoje: a extensão da imunidade tributária. Em um país em que Deus é mais um produto movimentando um mercado que vai de CDs a chaveiros, passando por emissoras de televisão, rádio e jornais, não é de surpreender que, com poucas e honrosas exceções, o PL 160/2009 e seu Artigo 14 tenham sido aprovados na Câmara com uma celeridade raramente vista. Afinal, citando ditado popular inclusive mencionado pelos contrários ao projeto na Câmara, ‘templo é dinheiro’.

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Servidora pública no Ministério Público Federal, Guarujá, SP