Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O sindicato, a repressão




AUDÁLIO DANTAS


Em abril de 1975 eu fui eleito presidente do Sindicato dos Jornalistas [de São Paulo]. Foi uma campanha muito difícil porque há 10 anos o sindicato estava na mão de direções que se sucediam, que se revezavam, [mas eram de um] mesmo grupo. E essa foi, na verdade a primeira eleição significativa de um movimento de oposição sindical no país. Porque os sindicatos estavam, como outras instituições, mas os sindicatos principalmente, sob um controle muito rígido do Ministério do Trabalho. E o Sindicato dos Jornalistas foi um caso pequeno de uma categoria pequena, mas cuja eleição teve uma repercussão muito grande no movimento sindical dos jornalistas e também no movimento sindical de modo geral.


[As antigas direções] eram direções conservadoras, que tinham o entendimento – e colocavam isso em prática com muito afinco – de que sindicato não tinha que discutir política. A questão política era para os partidos ou para outras instituições. A censura aos meios de comunicação era assunto que não entrava na discussão: até nos congressos de jornalistas essa questão passava ao largo. Então, a nossa plataforma, desse grupo que concorreu às eleições, foi resultado de um movimento muito significativo nas redações em São Paulo, que era uma reação da categoria chamada Movimento de Fortalecimento do Sindicato. E esse movimento tinha uma característica que na ocasião foi fundamental para a vitória (eu acho que ainda hoje esse sentido seria importante não só para o sindicato, mas para a sociedade de modo geral): era uma luta pluralista, independente de ideologias, de grupos políticos, de envolvimentos políticos etc. Foi muito aberta.


Já se disse, aliás equivocadamente – o próprio Elio Gaspari, no seu livro A Ditadura Encurralada –, que o Partido Comunista elegeu a diretoria do sindicato em 1975, o que não é verdade. Esse movimento era absolutamente plural e havia ali representantes de vários movimentos. Havia, claro, talvez uma maioria de pessoas ligadas ao PC, mas havia muitos que não eram. Muitos dos diretores, inclusive, não eram ligados a nenhum partido. Eu, por exemplo, não era filiado. Eu tinha proximidade com o PC, mas não era filiado.


Naquele momento, como hoje, só que naquele momento de maneira muito mais profunda e até dramática, era necessário o exercício da atividade política no sentido de superação daquela situação que o país vivia. Quando a nova diretoria assumiu o sindicato, logo no início propôs um debate sobre as várias questões que estavam em pauta no momento, entre as quais a principal era a questão da liberdade de informação, a política salarial do governo, que era uma coisa proibida de se falar, e outras questões que nós pusemos em discussão.


Vladimir Herzog foi um dos jornalistas que participaram da campanha, mas não com muita presença. E ele ia ao sindicato. O Vlado era uma pessoa, digamos, recolhida, ele não era muito de se expor. Era um sujeito tímido, arredio. Claro que ele apoiou e participou, mas ele aparecia lá principalmente em função da amizade que ele tinha com o Fernando Pacheco Jordão, que trabalhou com ele na BBC de Londres. Eram muito amigos, compadres, ele era padrinho de um dos filhos do Fernando, e o Fernando do filho dele, essas coisas. E, para não perder essa oportunidade de dizer, o Fernando foi quem escreveu o melhor trabalho até hoje produzido sobre o episódio Herzog [Dossiê Herzog – Prisão, tortura e morte no Brasil].







O jornalista Vladimir Herzog em trabalho de apuração
(acervo do Sindicato dos Jornalistas
Profissionais no Estado de São Paulo)



ALBERTO DINES


Eu estava no Rio [em outubro de 1975], onde nasci e sempre trabalhei. Havia recém-assumido o cargo de diretor da sucursal da Folha de S.Paulo poucos meses antes, em junho, julho, e também iniciava minha contribuição como colunista político – coisa que eu nunca tinha feito na vida – num jornal que não tinha página de opinião. Durante muitos anos, a Folha não teve página de opinião. Tinha um comentário de Brasília, que era feito pelo Ruy Lopes. Era um comentário sobre algum fato do dia e que saía em páginas diferentes, de acordo com o assunto. E a Folha tinha começado uma revolução de conteúdo, de opinião. Ao contrário das outras reformas dos jornais, todas elas cosméticas, a Folha fez uma coisa substantiva, sobretudo naquele momento [veja detalhes aqui]. Ela começou uma Página 2, de opinião. Então, nessa mexida que ela fez, um jornal que não tinha opinião resolveu expor a sua opinião de uma forma ostensiva num momento em que a imprensa ou estava sob censura ou estava em autocensura. A Folha naquele momento chamava atenção não apenas no circuito jornalístico, profissional, mas também junto aos leitores mais qualificados, que perceberam que o jornal, que na Página 2 tinha noticiário, passou a ter opiniões, e opiniões muito ostensivas, muito fortes.


Junto com essa minha contratação, eu consegui, de contrabando, a autorização do [Octávio] Frias [de Oliveira, publisher da Folha] para fazer uma coluna de crítica da imprensa – na época não se falava em mídia, falava-se em imprensa. E eu queria fazer uma coisa no segundo caderno, mas Frias aceitou a idéia do Cláudio Abramo para que se fizesse no primeiro caderno, numa página nobre – isso depois de me advertir que eu só ia ter problemas com essa coluna, coisa em que ele estava certo. Mas, de qualquer forma, a coluna ‘Jornal dos Jornais’ começou e deu uma certa sacudida, pelo fato de ser a primeira coluna regular de crítica da mídia, da imprensa, num jornal que estava começando a se soltar em termos opinativos e num período em que ninguém ousava manifestar uma opinião mais contundente.


Essa coluna saía aos domingos, e logo no início de outubro de 1975 eu recebo um telefonema de um amigo carioca, ligado ao Partido Comunista, me dizendo assim: ‘Dines, olha, a sua coluna está muito importante, eu precisava que você prestasse atenção num negócio que está preocupando muito os nossos companheiros em São Paulo’. E me contou que um colunista de direita, em São Paulo, chamado Cláudio Marques, do Shopping News, um jornal que já desapareceu há tempos, tinha uma coluna de picaretagem, mas de picaretagem à direita. E ele estava, aos domingos, fazendo piadinhas sobre o ‘hotel Hilton Tutóia’, onde era o DOI-Codi, que muita gente da TV Cultura precisava ir para lá. Piadinhas, não é? E depois ele foi num crescendo e começou a citar nomes, nomes inclusive da equipe de jornalistas da TV Cultura. Então, esse amigo [Zuenir Ventura] me telefonou: ‘Olha, o Vladimir Herzog está sendo citado com freqüência, e também o José Mindlin [então secretário estadual de Cultura], e queria ver se você dava uma nota aí, para ver se esse negócio acaba porque isso é muito perigoso, extremamente perigoso’. E no dia 12 de outubro, doze dias antes do Herzog ser preso e morto, eu publiquei [no ‘Jornal dos Jornais’] uma nota chamada ‘Caça às bruxas’ [clique aqui e role a página para ler], em que falo nesse colunista [Cláudio Marques] e num outro do Rio, também colunista de direita, Adirson de Barros, que era muito parecido com o Cláudio Marques, embora mais competente: era até um bom repórter político, mas muito agressivamente de direita. Eu dei essa nota e evidentemente não mencionei o Herzog, mas falando numa campanha sistemática contra a equipe de jornalistas da TV Cultura, e que isso era inadmissível. Lavrei esse protesto. Isso saiu no dia 12 de outubro, um domingo, e depois, no dia 24, à noite, uma sexta-feira, a polícia vai lá na TV Cultura dar uma ordem de prisão, ou convocação, não sei como foi o termo disso; o Herzog diz que não podia e foi [se apresentar] no dia seguinte de manhã. À noite estava morto.




As prisões
AUDÁLIO DANTAS


A participação dele [Vlado] era mais no plano intelectual. Ele era uma pessoa de esquerda, com preocupações políticas evidentemente, com preocupações culturais muito profundas. Era uma pessoa ligada à cultura, tinha sido editor de Cultura da revista Visão e as suas atividades eram muito voltadas para a questão da cultura. Mas naquele momento a gente tinha consciência de que isso poderia acontecer com qualquer um. Tinham sido presos, antes dele, onze jornalistas. A cada um que era preso, nós temíamos por suas vidas, porque nós jornalistas sabíamos o que acontecia nos porões da repressão, de onde saíam muitos cadáveres e caixões lacrados entregues às famílias com a ordem de que não se manifestassem. O que aconteceu, inclusive, três meses depois [do assassinato de Vlado] com o operário Manuel Fiel Filho, que foi entregue à família em caixão lacrado e com a ordem de que não houvesse manifestações.


O primeiro [jornalista a ser preso] foi o Sérgio Gomes da Silva. Na verdade, não eram bem prisões, eram seqüestros. A maioria deles foi seqüestrada. Uns eram apanhados nos locais de trabalho ou em casa, mas outros na rua, como foi o caso do Sérgio. Depois vieram – não é a ordem exata – Rodolfo Konder, Paulo Markun, Pola Galé, Anthony de Christo, Fred Pessoa da Silva, George Duque Estrada (que junto com o Konder foi um dos mais torturados), Diléa Frate, Marinilda Marchi, que trabalhava em Brasília e era mulher do Carlos Marchi [e também Ricardo de Moraes Monteiro, Luiz Paulo Costa e, mais tarde, Luiz Weis].




JOSÉ VIDAL POLA GALÉ


Minha prisão se deve mais à atividade e à ligação na universidade do que no meio jornalístico. Era 1975, eu estava no terceiro ano. Eu não fazia os trabalhos, não por negligência: era mais porque a atividade do centro acadêmico me absorvia bastante. Nem sei se eu estava no centro acadêmico. Não, eu não estava mais no Centro Acadêmico. A gente tinha perdido a eleição. Fiz parte com o [Paulo] Markun de uma chapa que foi derrotada na eleição. E então aconteceu essa prisão. Fiquei umas três, quatro semanas preso. Mas havia uma reação do D. Paulo [Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo] que foi muito importante, porque ele denunciava as prisões, as torturas, enchia o saco do governador, o Paulo Egydio [Martins], para fazer pressão.


Eu fiquei numa cela com outros dois jornalistas, o Frederico Pessoa e o Luiz Paulo [Costa]. Lembro que o Luiz Paulo tinha um problema na coluna, ele levou tanta pancada que ficou inerte, no chão. Então, para tudo ele precisava ser ajudado: comer, ir ao banheiro… a gente que levava ele porque ele tinha perdido a movimentação. E a gente ficava conversando ali, baixinho, porque se subisse um pouco a voz eles iam lá e reprimiam. Eram dias intermináveis. Chegava o café da manhã, que era um café e uma rodela de pão sem nada, e água. E no almoço também um prato, um prato plástico, tudo junto ali. E a gente comia. E a gente conversou que era bom se exercitar, fazer ginástica, enfim, criar alguma atividade. De todos nós eles tiravam a roupas e davam um macacão. Um macacão verde escuro, e o macacão me apertava, porque ele tinha pouca altura, então eu tinha que tirar senão ficava uma coisa extremamente desconfortável. Falei isso, mas o cara não quis saber de trocar. Para dormir tinha que tirar a parte de cima.


O Davi Capistrano [Filho] estava preso também na época. Ele foi prefeito de Santos [1993-96], e ele é médico – era, já morreu. Mas ele foi algumas vezes na cela para ver como estava o Luiz Paulo. O guarda levava. Dava um remédio e conversava rapidamente. A cela era uma coisa pequena, um colchão no chão, aquela latrina portuguesa no chão, sem porta, sem nada. E a grade. O quartinho devia ter 2 metros 3. Ficávamos os três lá em colchões. Só o colchão, sem lençóis.


Num determinado dia [eles disseram]: ‘Vocês vão embora’. Nos levaram para pegar as coisas, botar a roupa, sapato, devolveram o relógio. Aí foi juntando todo mundo, todo mundo se reviu. Antes de ir embora, juntava todo mundo para escrever: tinha que ter um relatório, anotar o que fazia e o que não fazia, de próprio punho. E um dia todo mundo pegou as coisas e foi num camburão desses grandes, em que cabiam várias pessoas. Mas é tudo fechado, você não vê a rua de dentro do camburão. Fomos lá dentro, o [Luiz] Weis estava nessa viagem também, o Fred [Pessoa]. Mas a sensação de ir para o DOPS era a melhor possível, porque você deixava de ser um desaparecido para ser um preso. Ou seja, você já estava sob a responsabilidade do Estado. No DOI-Codi você não estava sob a responsabilidade de ninguém. Institucionalmente não existia aquilo. Então, a ida para o DOPS era um alívio para todos nós.