Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O texto que mata a língua

Uma aula no curso de Jornalismo me fez pensar no que andam escrevendo por aí e de como novos usos, sentidos e significados têm sido dados a palavras, expressões, sentimentos e ideias. A questão era o uso do verbo “apreender” pessoas como sinônimo de prender. Inicialmente, me pareceu uma questão simples: eu apreendo equipamentos e prendo as pessoas que os transportam.

Mas o simples se complicou diante do argumento do aluno: mas a imprensa tem usado assim. E os exemplos passaram por policiais apreendendo menores infratores e assaltantes de banco. Perguntei se uma pessoa embriagada seria presa ou apreendida no caso de uma blitz de trânsito. A resposta, a julgar pelos textos publicados na imprensa, poderia ser um “tanto faz”.

Dessa forma, questionei se o carro poderia ser preso? E a carteira de motorista? Presa ou apreendida? O dicionário eletrônico Houaiss defende que apreensão se refere a coisas e objetos, nunca a pessoas.

Naquele momento, o que estava em questão para mim e para os alunos não era apenas a forma adequada de usar o verbo apreender. A questão era: por que a imprensa usa, se não é correto? Levantamos outros exemplos como forma de constatar que são muitas as inadequações no texto jornalístico. Perguntei se um deputado é cassado ou o mandato dele é cassado? Os veículos de comunicação usam a primeira forma e ela se tornou comum a ponto de não ser mais percebida como equivocada.

Pobreza vocabular

Expliquei que o deputado só poderia ser “caçado” caso alguém saísse armado com a intenção de capturá-lo. O que pode ser cassado é o mandato do tal indivíduo. O que deve ter sido usado como recurso redacional para enxugar um título consolidou-se na linguagem jornalística e pode ser visto e ouvido em jornais, na internet, no rádio e na TV. Em consequência, a imprensa estabelece um novo significado para o verbo cassar.

Outro exemplo de falso sinônimo é observado com o uso das expressões penalizar e punir. De tanto ser repetida a cantilena do “deputado que foi penalizado com a perda do mandato” ou do “gestor público que pode ser penalizado caso não devolva a verba desviada”, nossos estudantes não têm ideia de que uma coisa não tem nada a ver com outra. E quem está nas redações ou não sabe ou simplesmente se adapta aos novos usos que as palavras vão tomando.

Me pergunto se não estou sendo muito exigente ao acreditar que conhecer a língua e fazer o uso adequado dela é mínimo para quem exerce o jornalismo. Que a língua é viva, não restam dúvidas. As dúvidas pairam mesmo é sobre o mau gosto, a pobreza vocabular e a falta de criatividade.

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[Marcilene Forechi é jornalista, mestre em Educação e professora, Serra, ES]