Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O vale-tudo de outubro

Eleições não resolvem os problemas que se avolumam, mas são como tonificantes que dão sobrevida ao que se chama regime legal de governo. O ex-presidente Campos Sales (SP) deixou sua opinião no livro que escreveu depois de deixar o Palácio do Catete: ‘A eleição do presidente da República é o grande eixo da política nacional.’ Mais do que eixo, é um vale-tudo sem quartel. Na República Velha, o poder central referendava a eleição de parlamentares. Quem não fazia parte do grupo era carta fora do baralho. De eleição em eleição, mudou pouco. O presidente é o poder que decide e o poder está no bico da caneta que nomeia aliados e companheiros. E nas Medidas Provisórias que repetem o decreto-lei do regime militar (1964-1985). Nem o quadro eleitoral se modifica, pois Lula arquivou os ‘aloprados’, entrou de mala e cuia na campanha e toda a máquina governamental para eleger Dilma Rousseff.

Definições ideológicas já não valem mais: viram que partidos e entidades rotulados de esquerda pediram a Lula não o documento ‘A ruptura necessária’ (2001), mas sim, a reedição da ‘Carta ao povo brasileiro’, que o então candidato Lula assinou em junho de 2002 para ‘acalmar o mercado’ – que hoje já não tem restrições ao PT. Quem leu o livro Contra a corrente (Editora Record, 2001) – organizado pelo sociólogo Emir Sader, com artigos dos notáveis da New Left Review (NLR), que formulava uma espécie de ‘marxismo ocidental’ – sabe que eles, liderados por Perry Anderson, Pierre Bordieu, Fredric Jameson, Eric Hobsbawn e Robinson Blackburn, reconheceram ‘a derrota histórica da esquerda depois da queda do muro de Berlim (1989) e a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS)’. Nada de novo, pois Karl Popper antecipara o fracasso do ‘sonho comunista’ nos idos de 30, com seu clássico A sociedade aberta e seus inimigos (Ed. Itatiaia, 1960, BH).

Populismo de contrabando

O mais importante é a palavra de Perry Anderson, que mantém a NLR em circulação e doutrina: ‘Desde a reforma, não existe nenhuma oposição de peso, ou seja, nenhuma perspectiva que possa rivalizar sistematicamente ao pensamento predominante no Ocidente, pelo menos enquanto perdurar a globalização dominada pelo mercado.’ Para Anderson, temos à vista a mais bem-sucedida ideologia da história. Em outras palavras: o neoliberalismo monopoliza o globo, resultando na descontinuidade da cultura de esquerda, como se ela se renovasse a cada geração. Anderson, no entanto, não sai da liça. ‘O momento’ – afirma – ‘não pode ser de acomodação nem de consolação, mas de resignação’, o tipo da confissão, digamos assim, que não poderia ser feita de público…

É dentro dessa perspectiva que a social-democracia europeia e seus intelectuais entraram no Brasil já com um novo papel a ser aplicado na disputa capitalismo-socialismo, com as regras da Comissão Trilateral e do ‘Relatório Brandt’ (Willy Brandt, ex-primeiro-ministro da Alemanha Ocidental). Os ‘novos’ sindicalistas visitavam a Europa e de lá traziam contribuições. A criação do PT (10/02/1980) e, mais tarde, do PSDB (25/06/1988), antecedeu a derrota da revolução proletária. Se FHC chegou a ser prócer influente nas correntes marxistas, o intuitivo Lula jamais admitiu em seu tempo de sindicalista qualquer concessão ao velho PCB. Chegou a ser denunciado pelo falecido pelego Ari Campista como homem da CIA no movimento sindical brasileiro. A criação do PT (quem primeiro falou de um partido para os trabalhadores foi o ex-líder bancário mineiro Arlindo José Ramos) recebeu total apoio dos intelectuais uspianos, sendo de destacar os nomes de Francisco de Oliveira, Sérgio Buarque de Hollanda, Antônio Cândido, Mário Pedrosa e Paulo Arantes. Certo que eles saíram do PT desde o tempo (2004) do escândalo das propinas de Waldomiro Diniz (José Dirceu) e da Quadrilha dos Mensalões.

Como hoje já não se fala em mudança do modelo econômico, muito menos em revolução socialista, a razão está com o cientista político Alain Touraine, que introduziu FHC no cenário intelectual europeu: seja como for, o pêndulo volta para políticas destinadas aos mais pobres, mesmo que boa dose de populismo venha de contrabando. Tudo coisa velha que Getúlio explorou nos anos 40 (o pai dos pobres) e Lula revive hoje, de forma sistemática, inclusive quando diz ser filho de pai e mãe analfabetos. Claro que ninguém – Lula e seus novos companheiros, Delfim Netto à frente, e os ‘coronéis’ Sarney, Barbalho e as velhas oligarquias – vai inventar um novo Brasil. PSDB e PT são irmãos siameses. Mas quem sabe das coisas, como o filósofo Roberto Romano (Unicamp), lembra Platão: ‘Nenhum Estado subsiste se nele as dores e alegrias das pessoas não forem as dores e alegrias do coletivo.’

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Jornalista