Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O zelo da mídia pelos recursos públicos

Realmente muito estranha a série de reportagens veiculadas pela Rede Globo sobre os problemas com o programa Bolsa-Família, do governo federal. Antes de tudo pelo período em que as matérias ganharam amplo espaço no Fantástico e no Jornal Nacional – com repercussão nos jornais diários país afora. Apesar de boa parte das reportagens ter sido realizada entre 20 e 30 de setembro, o material só foi ao ar no domingo, 17/10. Muito tempo engavetado para um assunto tão importante. Coincidência ou não, os programas vão ao ar justamente no pico da campanha para o segundo turno. E o PT tem candidatos na disputa em 24 dos 44 municípios onde ocorre o segundo turno. Daí que denúncias contra o governo federal em área tão sensível podem dar uma boa mão aos adversários. Até aí, tudo bem.

O que me intriga é o tipo de abordagem nesse tipo de reportagem, quase sempre com o intuito de desqualificar o programa de ajuda aos pobres. Aliás, não é de hoje que boa parte dos coleguinhas – em defesa ou não do ponto de vista dos patrões – mostra que tem aversão a qualquer tipo de programa social. Lembro que, no ano passado, antes mesmo do anúncio do Fome Zero, os comentários de muitos colegas na redação do cotidiano onde trabalhava eram de que o programa não iria funcionar. E, acreditem, tinha gente que festejava a cada vez que surgia um problema que emperrava o programa. Na época, a principal crítica era à idéia – descabida, concordo – do José Graziano de distribuir alimentos diretamente aos pobres. Dar o dinheiro era a solução mais viável, todos diziam. E não faltou estudioso para afirmar que mesmo que 20% dos recursos fossem desviados ainda era mais barato do que criar uma enorme infra-estrutura de distribuição de alimentos e de fiscalização.

Discussão séria?

Agora, ao que parece, essa solução de distribuir o dinheiro já não serve. Acredito que o Bolsa-Família tenha muito mais problemas do que os apresentados nas reportagens da Globo e que o número de fraudes seja muito maior do que qualquer governo conseguirá apurar. Afinal, vivemos num país no qual o famoso ‘jeitinho’ de arranjar o próprio lado já está virando cultura nacional.

O problema é que as reportagens foram severas em relação ao Bolsa-Família, mas não aprofundaram o aspecto principal. Ou seja, a responsabilidade pelos cadastros é das prefeituras, portanto, dos prefeitos. Uma das reportagens até citou o caso dos privilégios aos funcionários públicos. Mas, não foi aprofundado e nem colocado em relevo esse aspecto de que as prefeituras cadastram quem não deveria receber o benefício e deixam de fora aqueles que precisam. Ou será que esse tipo de abordagem abrandaria a responsabilidade do governo federal?

Obviamente, é preciso maior eficiência na fiscalização do uso dos recursos. Mas, ao discutir quem é pobre ou quantos pobres existem no país, a reportagem da Globo, apresentada na segunda-feira (18/10), é quase ridícula. Ou seria uma discussão séria o depoimento daquele ‘especialista’ propondo a análise da massa corpórea do cadastrado, ou da outra entrevistada que afirmou ser difícil definir quem passa fome no Brasil, já que muitos obtêm alguma renda com trabalhos eventuais ou ilegais? Se for assim, podemos acrescentar outros milhares que se alimentam com o pão ou o resto de comida que pedem diariamente à porta de nossas casas, com as sopas coletivas fornecidas pelas ONGs, com pequenos furtos, com os restos que catam no lixo e por aí afora. Afinal, alguma coisa todos comem, senão já estariam mortos. Portanto, mais do que saber se todo brasileiro come algo todo dia é preciso discutir se ele consegue se alimentar com um mínimo de dignidade.

Para a mídia pode

Mas, ao que parece, a reportagem não pretendia mesmo nenhuma discussão séria sobre o tema. A comparação dos gastos do governo no Bolsa-Família com o orçamento do Ministério da Educação é, no mínimo, um desrespeito à inteligência de qualquer cidadão que conhece um pouco desse imenso e completo país. Mais salas de aula, mais professores e mais recursos para a educação – importantíssimos, diga-se logo – não impedirá que milhares de crianças continuem fora da escola porque precisam ajudar no sustento da casa. A fome não espera os resultados dos investimentos em educação ou outras políticas de longo prazo. Daí a necessidade de se fazer, também, algum tipo de programa social emergencial.

O que mais chama a atenção nesse tipo de ‘reportagem-denúncia’ – tão fácil de fazer quanto de ser superficial – é o zelo da mídia e de alguns coleguinhas pelo bom uso dos recursos públicos. Um zelo que nunca vi demonstrado quando o governo socorre bancos quebrados, empresta bilhões para salvar as empresas do setor elétrico, estuda um pacote para evitar a quebra das companhias aéreas, quando os estados ou a União ‘doam’ somas bilionárias a grandes companhias multinacionais para garantir a instalação de uma fábrica no Brasil.

Nem é preciso falar, claro, dos 10 bilhões de reais – o dobro do orçamento do Bolsa-Família – que as grandes empresas de mídia queriam arrancar do BNDES. Nesses casos, o dinheiro público é usado corretamente em benefício de milhares de brasileiros, presume-se. Já os programas sociais ou ações direcionados aos pobres são sempre um desperdício dos recursos de todos.

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Jornalista