Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O ‘invisível DJ’, a vontade divina e o Fantástico

Tenho lido em diversos textos, inclusive neste próprio Observatório, a indignação de colegas jornalistas e de cidadãos brasileiros no que diz respeito à cobertura da imprensa brasileira sobre as chuvas que atingem impiedosamente as regiões Norte e Nordeste. Diante das tão sábias e bem escritas palavras, decidi resignar-me e nada escrever. Até agora, pois a matéria apresentada pelo programa Fantástico, da Rede Globo, no domingo (24/5), suscitou tamanha revolta que não pude mais esconder a raiva e o nojo contidos desde o início dos alagamentos, desabamentos e esquecimentos. Todos eternos, como o Deus que salva e, ao mesmo tempo, manda a chuva descer.

Na mencionada reportagem, um jovem maranhense, vítima das chuvas, morador de Trizidela do Vale, interior do interior do inexistente estado do Maranhão, conhecido como Dj Rony (de acordo com o Fantástico, ‘o incrível cineasta da enchente’), mostra um modo ‘criativo’ de arranjar dinheiro: vende cópias de um vídeo caseiro intitulado Enchente 2009. No vídeo, Dj Rony mostra a desgraça alheia e a própria, ao som de música eletrônica.

O programa global enfatiza o sucesso de vendas do vídeo na cidade – totalmente submersa – sem, evidentemente, problematizar a contradição e o sentimento dos moradores. A justificativa recai num certo masoquismo do próprio povo, afeito a desgraças, até à própria. O próprio Dj Rony explica: ‘O pessoal compra mesmo. Meu trabalho, eu faço bem feito. Em 2009, vendi cerca de 100 cópias. A casa alagou, vou lá e gravo. Eles mesmos compram.’

Cidades esperam repasse do ano passado

Acredito que tal bizarrice se deva ao fato de os nordestinos e nortistas, pretos, índios, desdentados, famélicos habitantes de casas de taipa nos rincões do nordeste brasileiro, sujeitos às intempéries, ao bicho barbeiro e a outras doenças fatais, não se verem na televisão, nos telejornais ou em programas como o Fantástico. Excetuam-se os enquadramentos estereotipados de sempre: o Pará só existe na TV em razão dos conflitos agrários; o Piauí só existe para figurar nas estatísticas como o estado mais pobre do Brasil; quanto ao Maranhão, bem, este só existe para mostrar que o coronelismo ainda não acabou e que a família Sarney é quem manda, assim como o Amapá, quintalzinho do ex-presidente. Quanto ao estado da Bahia… continua sendo a terra da alegria vazia criada por ACM, já que a notícia mais comentada nos últimos tempos é a gravidez da intérprete de axé Ivete Sangalo.

Inegável que a cobertura das enchentes vem sendo realizada pela grande mídia brasileira, a exemplo da denúncia sobre a disparidade no tratamento da tragédia catarinense em relação às tragédias nordestina e nortista. O texto foi publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo na segunda-feira (25/5), portanto, no dia seguinte à exibição da matéria da Globo. Reproduzo, por necessidade, algumas informações apresentadas no referido texto:

‘Santa Catarina teve 63 cidades afetadas, 137 mortes, 51 mil desalojados e 27 mil desabrigados. No total, a estrutura de suporte para lidar com as enchentes contou com 24 helicópteros e 4 aviões da Força Aérea. Doações da sociedade totalizaram R$ 34 milhões e o governo federal e o Congresso Nacional prometeram a liberação de R4 360 milhões. Apesar de registrar um número menor de mortos até o momento, 45, o Nordeste tem 299 cidades afetadas, 200 mil desalojados e 114 mil desabrigados. Mesmo assim, com um número quatro vezes superior de pessoas que precisam urgentemente de ajuda, só três helicópteros e três aviões atuam na região. E as doações não alcançam os R$ 4 milhões. Só ontem, após quase dois meses do início das tempestades, o governo federal destinou verba ao Nordeste, por meio de medida provisória assinada pelo presidente em exercício, José Alencar [Lula circula pela Bahia, cercado de helicópteros, ambulâncias e escolta policial cinematográfica, da qual fui testemunha há poucas horas, no bairro de Ondina], que liberou R$ 880 milhões – incluindo a ajuda às vítimas da seca no Sul. As cidades atingidas ainda esperam repasse de R$ 23 milhões desde as enchentes do ano passado, referentes a empenhos do Orçamento de 2007.’

Espécie mutante de seres aquáticos

A cobertura da Globo, no entanto, além de mal feita, é repleta de desinformação. Em meados do mês de abril, a emissora apresentou – descarada e mentirosamente – imagens de algumas pessoas ilhadas sobre bancos de pontos de ônibus em virtude de alagamentos na cidade de Salvador (Bahia). O texto do repórter, no entanto, afirmava com a veemência e o sotaque ‘correto’ de sempre tratar-se da cidade de São Luís (bem distante, lá no Maranhão).

Infelizmente, isso reflete o sempiterno preconceito da grande mídia do ‘eixo’, ao abordar as regiões Norte e Nordeste do país em qualquer situação, positiva ou negativa: ou são todos baianos, ou são todos ‘paraíba’, ou são todos humoristas cearenses. Tal posicionamento é notado facilmente nas telenovelas globais ambientadas no Nordeste: todos falam sempre da mesma forma; com isso, conclui-se que são todos pernambucanos! Além disso, o Brasil daqui ‘de cima’ é lugar de gente rude, sem cultura, habituada a sobreviver (‘antes de tudo, um forte’, já dizia Euclides da Cunha), desafiando os castigos divinos e eternizando as promessas de candidatos a cargos políticos.

Ainda sobre a horripilante matéria exibida no Fantástico, afora a já manjada exploração sensacionalista dos dramas humanos da gentalha – com direito a lágrimas em zoom in, tão clichê –, causa estupefação o modo como o jornalismo global presta desserviços ao público em favor do melodrama gratuito e mal elaborado (nordestino por nordestino, prefiro a fake Maria do Carmo, de Senhora do Destino). Nada de cobrança por políticas públicas ou exigência de esclarecimentos das autoridades, eleitas por essa mesma gente que, daqui a algum tempo, vai perder este status para tornar-se espécie mutante de seres aquáticos, caso não morra antes de leptospirose ou qualquer outra desgraça mandada por Deus.

Persistência para vencer e ser alguém

Claro, ele é o grande culpado, como revela, na matéria do Fantástico, uma mulher resignada que aprendeu a viver sobre laje do que um dia foi a casa, segurando um plástico que lhe serve de teto. Ela explica: ‘O dia tem muito sol, e à noite tem chuva. Toda noite chove. (…) Já estou acostumada. Quase todo ano a gente passa por isso.’ Com isso, a rede Globo ajuda a reforçar o infame estereótipo sobre o nordestino: quase bicho, acostumado a sofrer (coitado!), vai sobreviver, certamente, mesmo que ninguém ajude, já que é ‘um forte’. Mas, já estou me repetindo…

Na verdade, tenho notado que a referida emissora vem exibindo com recorrência, em diversos programas, a estranha idéia da ‘superação’. Quadro quase obrigatório na grade global, a esquisitice segue nitidamente a lógica perversa e arrivista do self-made man. Dessa forma, a Rede Globo atira às fuças dos pobres do Brasil a interpretação – elitista e infundada –, segundo a qual a miséria deriva da falta de trabalho, inteligência e esforço individual. Assim, exime os governantes do papel que lhes cabe por dever, num estado laico e supostamente democrático, como arrotam os spots de alta pirotecnia publicitária exibidos durante o Horário Eleitoral Gratuito em ano de pleito (quase todos…).

Nessa lógica, o pobre é pobre não porque é preto sem qualquer reparação, não porque é vítima de 500 anos de (des)organização social injusta, mas porque não trabalha, não luta, não tem persistência – a persistência necessária para vencer na vida e ser alguém (dois outros péssimos clichês).

A versão terrestre do paraíso

Ano passado, pleno domingo à tarde, o programa apresentado por Fausto Silva, na mesma emissora, exibiu a história de um adolescente pernambucano aprovado no vestibular para Medicina numa instituição pública do estado mesmo tendo sempre estudado, a duras penas, em escola pública e rural. Para freqüentar as aulas, o herói imberbe tinha de caminhar ida-e-volta uma distância inimaginável, pois não tinha dinheiro para o transporte, comprar livros e demais materiais (já que a renda da família de pais analfabetos era de R$ 140,00 mensais) e, claro!, era muito bem tratado pelos colegas, todos de classe média. Ao fim, resta o argumento segundo o qual basta lutar que se vence. Qualquer um é capaz! Portanto, quem continua pobre, merece, pois não se esforça o suficiente. Na ocasião, nenhuma cobrança por políticas públicas. Outros casos proliferam da programação global, mas seria impertinente listá-los aqui.

Na Bahia, a situação é também alarmante: milhares de pessoas desabrigadas, deslizando pelas encostas diariamente, figuram nas estatísticas. Chega a ser engraçado ver a cobertura televisiva local, sobretudo a da retransmissora global, de sobrenome Magalhães. Se ACM estivesse vivo (o verdadeiro, não o clone, que por aí perambula a arrotar hipócrita moralidade), as chuvas não castigariam a Bahia, pois ordenaria a Deus que devolvesse a alegria desta terra abençoada, de povo alegre, ainda que o sorriso mostre a ausência de dentes… Mas, como o governo do estado está nas mãos do PT e a prefeitura, com o PDT, Salvador, pelas lentes da TV, é o caos absoluto. Mas, não muito, pois a ideologia publicitária de ACM foi devidamente internalizada; logo, Salvador, alagada ou não, continua sendo a versão terrestre do paraíso. Amém!

Com a ajuda de Deus e da moça do tempo

Peço perdão antecipado se estiver na ignorância, mas não tenho visto o governador ou o prefeito fazerem jus aos votos recebidos. Não houve sequer um pronunciamento sobre medidas efetivas para tentar controlar a situação e proteger os insistentes, a deslizar de barrancos, ‘invadidos’ por essa gente impertinente que não gosta de pagar IPTU. Ah… Claro que houve! O prefeito apareceu na TV dia desses, com um ministro, seu conterrâneo e aliado, a fim de mostrar como é eficiente no cargo e o que tem feito (mas, na prática, só ele é capaz de ver) pela cidade. Além disso, noticiou-se que o prefeito de Salvador passou mal, ao ser informado sobre ‘novos’ deslizamentos e ‘novas’ mortes. Pasmem! E os cearenses é que são humoristas!

Depois de tantas voltas, retomo a reportagem do Fantástico, que não me sai da cabeça. Infelizmente! Bem gostaria de esquecer. Sem cumprir exigências fundamentais do jornalismo, a emissora ainda tem na manga o grand finale, ao expor a seguinte informação, escrita na tela, com um fundo musical mezzo triste – quase um réquiem –, mezzo forró (afinal, o Maranhão fica no Nordeste, para quem não sabe. Ah, e estamos perto dos festejos juninos): ‘O Instituto Nacional de Meteorologia prevê diminuição das chuvas a partir desta semana.’ Ufa! Que bom! Tudo há de se ajeitar, com a ajuda de Deus e da moça do tempo, culpados pelas desventuras dos sertanejos cafuzos do interior do Maranhão, do Piauí e das favelas soteropolitanas.

Um quadro terrível

Mas, quando penso que acabou, a bizarrice parece não ter fim: as imagens que encerram a reportagem, em câmera lenta – como não poderia deixar de ser, para reforçar a melodramaticidade –, mostram dois homens numa canoa, remando por onde antes eram as ruas da cidade; um outro homem, submerso, apenas com a cabeça do fora (por alguns segundos, pensei que ele mergulharia e ressurgiria tal qual Isadora Ribeiro, na antiga abertura do Fantástico). Não bastando, a câmera desenvolve movimento ascendente rumo ao alto da escada que antes fazia parte de uma casa, enquadrando uma mulher e uma criança. Ainda não satisfeita com o apelo emocional e sensacionalista fácil às figuras feminina e infantil no alto do alagamento, a criança segura, no escuro, uma vela acesa, como a dizer: ‘Ainda há esperança’, ‘Ainda acreditamos que Deus irá nos salvar, apesar de nos castigar com essa chuva’.

Realmente, um exemplo estupendo de mau gosto! E o pior: tenho certeza de que muitos telespectadores se emocionaram, ao final, com o vazio da desastrosa reportagem, se assim for possível denominar o estranho feito global.

Na versão disponibilizada no ‘portal fantástico’, há um link, bem no meio do texto, como uma espécie de pretenso intertítulo, a conclamar: ‘Veja como ajudar as vítimas da enchente’. Ao clicar, o já esperado: publicidade para o ‘ação global’ que, num contexto social sem providências – a não ser a divina (e essa ainda está castigando) – arroga-se salvador dos pobres, dos sem-educação, dos sem-bola-de-futebol, dos sem-aula-de-dança, dos sem-nada.

Enquanto isso, Dj Rony e os conterrâneos maranhenses pobres continuarão invisíveis perante o poder público e a própria sociedade, que não sabe cobrar das instâncias competentes (?) o cumprimento de seu dever. Diante desse quadro terrível, só nos resta pedir a Santo Antônio, São João e São Pedro que intercedam por essa gente.

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Jornalista e professora universitária, Salvador, BA