Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O olhar crítico do receptor

Photo graphien – escrever com a luz. A união dessas duas palavras representa, ao lado da palavra falada e da palavra escrita, uma grande revolução do gênero humano. A fotografia não é uma invenção de apenas uma pessoa, é o esforço de várias pessoas, nas áreas da química, da física e da ótica, em épocas e lugares diferentes.

Sempre foi o desejo do homem reter aquilo que os olhos viam. Em busca desse objetivo, nossos antepassados faziam desenhos rupestres com cenas de caçadas e do cotidiano. Depois vieram as gravuras xilográficas, litográficas, em papiro e em telas de algodão ou linho. Conforme novas técnicas surgiam, o homem buscava novas maneiras de dar materialidade às cenas registradas em sua retina.

Todavia, a técnica da pintura, ou gravura, é uma representação sujeita a um filtro bastante denso: a limitação intrínseca à arte de reproduzir o que os olhos viam. O resultado expresso em um relato ou em uma pintura está impregnado de sentimentos, crenças e outras sensações pessoais. Este conjunto de sentimentos influencia fortemente o produto final e pode falsear a realidade.

Existe outra limitação presente nestes meios de comunicação primitivos: nunca uma pintura ou gravura, por mais acurada que seja a técnica empregada, poderá reproduzir de forma literal e com fidelidade de detalhes o que o olhar captou no instante decisivo: o instante fugaz que, uma vez perdido, não mais se repetirá. Esta capacidade de reter o instante só foi possível com a consolidação da tecnologia da fotografia.

Filtros podem corromper

O advento da fotografia criou condições para se registrarem os detalhes antes restritos à retina dos observadores. A fotografia possibilitou o que chamamos de recorte da realidade – um pedaço da realidade captado pelo olhar do fotógrafo e a lente da câmera. Uma cena registrada em momento único.

Entretanto, deve-se considerar que o recorte da realidade é o produto resultante da perícia, da coragem, do olhar, do equipamento utilizado e do local onde o fotógrafo está. Tantas variáveis assim impõem diversos filtros ao ato de fotografar. Tomemos um exemplo hipotético: dois fotógrafos no mesmo local e diante da mesma cena. Ainda que os dois agentes disparassem as suas máquinas ao mesmo tempo, seriam dois recortes diferentes, sobretudo em razão do olhar de cada um. A famosa foto de Kevin Carter, tomada em 1993, no Sudão, ilustra bem este aspecto. A cena: uma menina prestes a morrer de inanição e um urubu está à espera da morte da criança. Outro fotógrafo que acompanhava Carter fez também uma foto da menina, sem enquadrar o urubu no plano da foto. Duas fotos feitas no mesmo local e horário. A simples inserção da ave, na fotografia de Kevin Carter, mudou completamente a mensagem da fotografia e correu o mundo. Da segunda foto, quase ninguém tomou conhecimento.

Podemos acrescentar outros filtros: a seleção do fotógrafo, que decidiu por fotografar ‘A’ no lugar de ‘B’. As fotografias, quando chegam às mãos do editor, são novamente selecionadas de acordo com a ideologia e linha editorial do veículo. Quando a fotografia alcança o receptor, através da capa da revista ou primeira página do jornal ou no miolo destes meios de comunicação, ela passou por diversos filtros que podem ter corrompido o que de fato aconteceu. Estes filtros estão sob a superfície da fotografia e exigem um olhar crítico do receptor.

Perfeição e heroísmo podem ser suspeitos

Assim, a realidade retratada em uma fotografia pode não ser tão real – pode até mesmo ser um simulacro. A história está repleta de imagens que enganaram a todos, durante anos, até o dia em que foram desmascaradas.

Os enganos contidos nas fotografias podem ter um caráter estético – quando vemos uma pessoa de formas perfeitas na capa de uma revista: uma perfeição construída em um editor de imagens como o popular Photoshop, por exemplo. As curvas estonteantes são, em muitos casos, construídas em programas e induzem o receptor ao engano.

Outros enganos são inseridos nas imagens por conveniência do Estado, para manipular a opinião pública – estes simulacros são comuns em tempos de guerra, por exemplo. Tomemos o exemplo da famosa fotografia feita por Joe Rosenthal, durante a Segunda Guerra Mundial: os marines hasteando a bandeira americana na ilha de Iwojima, em 1945. Esta cena foi capa de revista, estampa de selo postal, monumento em praça pública e foi usada pelo governo americano para levantar fundos para o esforço de guerra. Na verdade, a fotografia foi encenada. Os soldados ensaiaram o hasteamento da bandeira diversas vezes, até ele ganhar uma aparência heróica. O Estado sabia disso, mas não se acanhou em tirar proveito da imagem encenada.

Da próxima vez em que contemplar uma fotografia ou uma pintura, lembre-se destes filtros e dos enganos que podem existir sob a superfície da imagem – perfeição demais e heroísmo demais podem ser suspeitos.

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Jornalista e repórter fotográfico