Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Obama e os extremistas dos talk shows

Um dos problemas da política nos EUA é que o extremismo de direita continua a ser encarado como parte do pensamento de centro. Ninguém se horroriza com isso, da mesma forma como o resto do país não se horrorizava quando o racismo sulista, no século seguinte à derrota da Confederação na Guerra Civil, mantinha a segregação e enviava cartões postais ao norte mostrando os linchamentos de negros.


Participantes das turbas linchadoras fotografavam aqueles assassinatos públicos de negros e freqüentemente faziam fotos dos eventos macabros. Depois, davam-se ao luxo de disseminar suas fotografias com orgulho. Boa parte delas sobrevive e muitas foram reunidas pelo escritor James Allen (com a colaboração do deputado John Lewis e outros) no livro Without Sanctuary: Photographs and Postcards of Lynching in America (Sem Santuário: Fotografias e Cartões Postais de Linchamentos na América).


Como o título indica, é uma coleção reveladora neste ano de eleição presidencial em que um negro pode chegar à Casa Branca (saiba mais aqui). Funciona como um retrato de corpo inteiro do racismo americano depois de uma guerra que, suposta e oficialmente, tinha acabado com o racismo e libertado os negros da escravidão. No norte dos EUA havia os que se indignavam com os cartões mas nem por isso políticos do sul deixavam de legislar no Capitólio, governar nos gabinetes executivos e fazer justiça nos tribunais.


A voz dos radicais no rádio


Minha impressão é de que o estado de espírito daquelas pessoas que faziam e distribuíam fotos e cartões postais, usando o Correio nacional, não era diferente daqueles que insistem hoje na pregação do ódio racial, freqüentemente através de talk shows celebrizados pelo baixo nível e transmitidos a todo o país por cadeias radiofônicas – como é o caso dos notórios Rush Limbaugh, Bob Grant, Michael Savage, Sean Hannity, C. Gordon Liddy e outros.


Alguém pode até pensar que essa gente, por causa do extremismo, é ignorada. Mas John McCain, herói deles, aplaude os programas, às vezes dá entrevista exclusiva a tais personagens – o que já fez, por exemplo, com Liddy, criminoso condenado no escândalo de Watergate (‘ele já cumpriu sua pena na prisão’, justificou o candidato). Todos exaltam as virtudes superiores de McCain e difamam o democrata Barack Obama – como mentiroso, terrorista, comunista, etc.


Obcecado em derrotar Obama, Rush Limbaugh já tinha feito o máximo para levantar nas primárias a campanha de Hillary Clinton. Chegou ao extremo de conclamar republicanos a deixarem de lado as primárias do próprio partido e votarem na dos democratas naqueles estados onde isso era permitido (alguns estados proibem que o eleitor de um partido vote na primária do outro). Depois vangloriou-se de ter criado o caos no partido adversário.


Considerado o rei dos talk shows de rádio, Limbaugh agora acusa o candidato democrata de ser antipatriota por ter, em 2001, rejeitado frontalmente, durante um debate na televisão, a Constituição dos EUA. ‘Ele não gosta da Constituição, por isso acha que é cheia de falhas. Agora entendo porque reluta tanto em usar a bandeira americana na lapela’, afirmou o apresentador em seu programa de 27 de outubro.


A Constituição e suas falhas


A certa altura, Limbaugh fez esta afirmação: ‘Não entendo como Obama fará o juramento (presidencial) já que é contra a Constituição’. Só que a tal rejeição nunca aconteceu, conforme explicou a organização Media Matters for America, que monitora a mídia. Obama observara, como estudioso da carta, que ela ‘refletia uma falha fundamental neste país que perdura até hoje’. Mas dissera também ser a Constituição ‘um extraordinário documento político que pavimentou o caminho para o que somos hoje’.


As declarações de Obama foram num programa da TV pública de Chicago, há sete anos, sobre ‘a escravidão e a Constituição’. O Media Matters destacou que a ‘falha fundamental’ da carta em relação ao tema, citada por Obama, é admitida até por republicanos como o presidente George W. Bush, a secretária de Estado Condoleezza Rice e o antecessor dela Colin Powell e até o atual presidente da Suprema Corte, o conservador John Roberts.


Rice disse recentemente: ‘Na nossa primeira Constituição, meus ancestrais eram três quintos de um homem. O que diz isso sobre a democracia americana em seu começo? Tenho dito que é um grave defeito de nascença. E temos de derrotar tal falha, pois continua a ter impacto sobre nós. É por isso que temos tanta dificuldade em falar sobre raça e tratar do tema racial’.


Em 2003 Powell declarou a Larry King na CNN: ‘Levou um tempo para reconhecermos que não poderíamos viver plenamente nossa Constituição a menos que eliminássemos a escravidão. Centenas de milhares de jovens lutaram uma guerra civil para pôr fim à escravidão. Depois, ainda levamos muito tempo para nos livrarmos dos vestígios da escravidão. E até hoje continuamos a trabalhar nesse sentido’.


A amargura de outros tempos


Também em 2003, Bush disse no Senegal que a ‘visão moral’ dos abolicionistas ‘levou os americanos a examinarem seus corações para corrigir nossa Constituição e ensinar nossos filhos a dignidade e a igualdade de todas as pessoas e de todas as raças. (…) Muitas das questões que ainda perturbam a América têm suas raízes na experiência amarga de outros tempos’.


Em 2006, foi a vez de Roberts: em entrevista à C-SPAN, canal público, o atual presidente da Suprema Corte falou da Constituição e de seus autores. ‘Eles nunca souberam o que fazer em relação à escravidão e deixaram isso de lado. Decidiram que não se devia falar do assunto. Isso manchou a Constituição. E foi preciso uma guerra civil para remover aquela mancha’, afirmou. (Saiba mais sobre a escravidão e a Constituição aqui.)


Limbaugh, como outros colegas extremistas dos talk shows, fala diretamente a pessoas simples das regiões que Sarah Palin chama de ‘patrióticas’. Gente que acredita no que ele diz. Os donos de programas, aliás, nunca reconhecem qualquer erro, por maior que seja o disparate. Os democratas querem a volta à fairness doctrine – a doutrina que parte da mídia adotava antes, sem muito entusiasmo – e que dava a outros o direito de resposta, ou opiniões diferentes ou correção de erros factuais cometidos pelos veículos.


Agora, ao contrário, um movimento liderado pela Fox News, do império Murdoch de mídia, vê a doutrina como violação à liberdade de imprensa. ‘O ouvinte de Limbaugh ou Hannity quer ouvir os dois e não a opinião de quem discorda deles’, argumenta-se. A Fox, especializada em falsificar a informação – e até a realidade – define paradoxalmente seu jornalismo como fair and balanced (justo e equilibrado). E agora obstina-se em impedir o Congresso, sob maioria democrata, de aprovar qualquer lei sobre o assunto.

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Jornalista