Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os bilhões do ‘Mineirinho’ de Tatuí

A maioria dos brasileiros sequer ouviu falar do ‘Mineirinho’ de Tatuí. O que já é de se esperar, tendo em vista a escassa preocupação da imprensa com o misterioso personagem que mal surgiu e já desapareceu completamente da mídia no breve intervalo de uma semana. Fato banal, fosse ele apenas um personagem do onipresente BBB ou mais uma vítima fugaz da nossa violência urbana. O ‘Mineirinho’ de Tatuí, no entanto, ao sumir levou consigo uma fortuna de 2,5 bilhões de reais. Mal comparando, são 50 vezes o valor do prêmio ganho pelo vencedor da mega-sena assassinado em Rio Bonito (RJ), assunto sobre o qual todo mundo espalha opinião nas esquinas do país.


Para quem chega agora, vamos a um resumo da fantástica história do Francisco Nunes Pereira, cidadão modesto da periferia de Tatuí – pacata cidade de 100 mil habitantes no interior de São Paulo. Conhecido como ‘Mineirinho’ ou ‘Chico da Fossa’, Francisco Pereira tem 44 anos e até janeiro deste ano morava com a mulher e os dois filhos em uma casa simples, na sobreloja de uma pequena oficina mecânica. Deslocava-se pela cidade num surrado Gol vermelho ano 1998, registrado no nome da esposa. Não consta que tenha emprego, mas carrega vasto histórico como empresário mal-sucedido, o que se reflete em uma coleção de dívidas espalhadas pela cidade: reclamações trabalhistas, cheques sem fundo, execuções fiscais, pequenos negócios desfeitos – nada especialmente incomum.


Surpreendentemente, uma dessas pendências banais seria a razão de sua fama e desgraça. Um de seus credores apelou à Justiça para receber o pagamento devido por um terreno, coisa de 100 mil reais. O juiz Caio Moscariello Rodrigues, da 1ª Vara Cível, decretou o bloqueio dos bens do ‘Mineirinho’ e acabou batendo na porta das suas contas correntes no Banco do Brasil. Em apenas uma delas encontrou nada menos que R$ 965.418.112,98. No total, descobriu-se que Pereira tem cerca de R$ 2,5 bilhões em depósitos. O que faz dele a 16ª maior fortuna pessoal do país, ombro a ombro com Constantino de Oliveira Júnior, dono e presidente da Gol Linhas Aéreas.


Dez laudas de repercussão


Num país tão acostumado a tramóias, escândalos e falcatruas, era de se esperar que tal caso não chegasse a surpreender. Mas, tendo em vista a magnitude dos valores envolvidos e o inusitado da personagem, surpreendente mesmo foi o (pouco) interesse da imprensa pelo assunto.


Uma pesquisa no Google revela que o caso bilionário de Tatuí só atraiu a atenção de três grandes veículos:


Em 9 de janeiro, uma pequena matéria de José Maria Tomazela apareceu sem maiores destaques no Estadão. Simultaneamente, ‘Mineirinho’ ganhou duas páginas na revista semanal IstoÉ, com data de 10 de janeiro e texto de Rodrigo Rangel. Quatro dias depois, Daniel Santini publicou mais algum material inédito no portal de notícias G1, das Organizações Globo, que até então apenas reproduzira as notícias anteriores. Nos arquivos da Folha de S.Paulo e do Folha OnLine não se acha sequer uma notinha sobre o ocorrido.


Como era de se esperar, muitos espaços alternativos da internet repercutiram o caso, entre eles o blog do jornalista Luís Nassif, que postou uma nota em 10 de janeiro sobre o assunto. No entanto, se somarmos toda a apuração feita pela grande imprensa não totalizamos mais que 14 mil toques de texto, meras 10 laudas jornalísticas dos velhos tempos.


Aparentemente, o interesse dos repórteres e editores pelo caso encerrou-se em 14 de janeiro. Desde então temos mais de dois meses de silêncio ensurdecedor. O que é – na melhor das hipóteses – uma insanidade jornalística já que, pelo pouco que se sabe, o caso é pitoresco, tem ingredientes completamente inusitados e as notícias sobre as investigações deveriam estar sendo disputadas a tapa pelos jornais e revistas.


No entanto, o cidadão brasileiro que lê jornais e revistas não tem hoje a mais vaga idéia sobre a quantas andam a investigações. Claro que, como se sabe, os trabalhos do Coaf e da Justiça devem respeitar as regras de sigilo bancário e fiscal do cidadão, a menos que os mesmos sejam quebrados por determinação judicial ou de alguma CPI. Mas o país já viu nos últimos tempos os sigilos de inúmeras pessoas serem quebrados por indícios de crime muito menos consistentes do que os que existem nesse caso.


A falta que a calculadora faz


Desse modo, a história do ‘Mineirinho’ de Tatuí ganha contornos especialmente intrigantes não apenas pelo inusitado do caso em si, mas também pelo comportamento da mídia e dos políticos. Na época do impeachment do Collor, alegava-se que o ‘esquema PC’ havia feito uma festa na qual se comemorou o primeiro bilhão desviado dos cofres públicos, e por conta disso derrubou-se o presidente. Recentemente, todo o escarcéu montado em volta do chamado ‘escândalo do mensalão’ não totaliza 100 milhões de reais. Aí aparece um desconhecido com 2,5 bilhões de reais na conta e ninguém se preocupa em saber de onde veio tanta grana?


Alguns fatores peculiares talvez expliquem esse virtual desinteresse da imprensa.


O primeiro diz respeito à vaidade dos jornalistas e dos veículos da mídia. Mesmo vendo com reservas o que já foi publicado (as notícias parecem ter algumas inconsistências), a história dos bilhões do mineirinho não é nova. Há pelo menos um par de anos o homem já movimentava cifras escabrosas de dinheiro em sua conta. Aparentemente, isso já chamava a atenção da justiça e da polícia desde meados do ano passado e a nossa imprensa – tão eficiente em descobrir os novos casos de amor do Reinaldo Gianechinni e da Debora Secco, entre outras personalidades de renome – não se deu conta disso. Ou seja, toda a imprensa foi de certo modo ‘furada’ pelo mundo real e a notícia só foi publicada quando já era meio velha. Não mereceu grande destaque logo de cara, e aí teria entrado em cena a tradição de que os grandes veículos não gostam de repercutir as descobertas dos concorrentes.


O segundo ponto nos leva à velha máxima que diz que ‘jornalista não sabe fazer contas’, uma lenda que parece curiosamente real nesse caso. Ao examinar o enfoque das notícias publicadas, fica-se com a impressão de que existe uma possibilidade (ainda que pequena) de que o dinheiro seja mesmo do sujeito, de que ‘o ‘Mineirinho’ ficou rico comercializando pedras preciosas no exterior’, como dizem seu irmão e seu advogado. Sendo esse o caso, tratar-se-ia apenas de uma notícia pitoresca, um caso curioso de ‘bilionário que vivia como pobre até ser descoberto’. Aliás, boa parte dos comentários que se lêem sobre essa história na internet leva a coisa meio para o lado da galhofa.


No entanto, o mundo real dos números nos apresenta uma notícia (publicada também no site do G1) na qual se afirma que, no ano de 2006, ‘o lucro líquido da empresa De Beers SA subiu 32% e bateu na casa dos 730 milhões de dólares. Mas os números positivos se dão graças aos ganhos financeiros excepcionais obtidos com as vendas de parte de suas minas na África do Sul’.


Ou seja, em alguns meses, nosso ‘Mineirinho acumulou na sua conta corrente pessoal uma vez e meia o lucro anual ‘excepcional’ da maior empresa mineradora de diamantes do mundo, singelamente ‘comercializando pedras preciosas no exterior’.


Diante disso resta uma pergunta: a ser verdade, o que faz o presidente da República que ainda não convocou esse talento tupiniquim para o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior? Temos que avisar urgentemente ao Og Mandino (e a todos os incautos compradores do seu best-seller) que o negociante Hafid já era: o título de ‘maior vendedor do mundo’ está definitivamente nas mãos do mascate Chico da Fossa, da pacata Tatuí.


Respostas sem perguntas


Por outro lado, se abandonarmos essa história da carochinha de venda de pedras e encamparmos a tese de que o ‘Mineirinho’ não passava de um mega-laranja, a história também não fecha com facilidade e há muitos pontos nebulosos.


A primeira questão que surge diz respeito ao valor envolvido. Não é muito fácil achar no Brasil quem tenha um Caixa 2 ou mesmo um desvio de verba pública da ordem de 1 bilhão de dólares. Principalmente porque o grande capital financeiro e as corporações multinacionais possuem esquemas bem mais sofisticados e discretos para lidar com grandes somas mal explicadas, sem necessidade de apelar para laranjas e similares. Quem teria interesse em arriscar essa enorme soma de recursos numa operação tão primária de lavagem de dinheiro?


Por outro lado, se formos para o mundo do crime organizado, é preciso lembrar que o mega-roubo do Banco Central em Fortaleza rendeu meros R$ 150 milhões aos bandidos, supostamente ligados ao PCC. Seria preciso fazer seis roubos desses para (sem descontar os custos operacionais das peripécias) abastecer apenas uma das contas do ‘Mineirinho’ no Banco do Brasil. Se a coisa for para o lado do crime, é preciso esquecer o PCC e o Comando Vermelho. Estaremos falando de organizações do porte de um cartel de Cali, Al-Qaeda, máfia russa e similares. O que seria uma verdadeira bomba jornalística, ou não?


A segunda questão diz respeito ao fato de uma organização (regular ou criminosa) colocar tamanha quantidade de dinheiro na mão de uma única pessoa. Quem, em sã consciência, escolheria um sujeito com negócios tão enrolados, tão cheio de problemas com a justiça, com cheques sem fundo voando na praça e fama de mau pagador para ser fiel depositário da bagatela de 1,2 bilhão de dólares? Até porque, ao que parece, não se trata do laranja clássico – aquele que não sabe que seu CPF está sendo usado em operações escusas. O Francisco Pereira diz que o dinheiro é dele, aplica em CDBs no Banco do Brasil e insere o montante na sua declaração anual de Imposto de Renda.


Uma terceira questão: tamanho volume de grana não pode ter chegado à conta corrente por meio de depósitos anônimos feitos em dinheiro vivo na boca do caixa. R$ 2,5 bilhões equivalem a nada menos que 50 milhões de cédulas de R$ 50,00. Em peso, isso dá algo em torno de 30 a 40 toneladas de papel-moeda. Ou seja, essa bufunfa certamente entrou no banco por meio de transferência eletrônica e/ou por depósitos em cheque. Em pouco mais de quinze dias, o Brasil já sabia por quais bancos e casas de câmbio tinham passado as notas de dólares dos trapalhões Gedimar e Valdebram. Mas, dois meses depois da história vir a público, ninguém se dá ao trabalho de perguntar de onde vieram os depósitos do Chico Mineiro.


Um ponto especialmente intrigante: por que os depósitos nas contas continuaram meses depois do bloqueio judicial das mesmas? Não faz nenhum sentido. E menos sentido ainda faz o Francisco não ter pago os 103 mil reais devidos ao tal Di Luccia para desbloquear os 965 milhões que estavam na sua conta.


Seja qual for o enredo real, o caso do ‘Mineirinho’ de Tatuí deixa o Banco do Brasil, o Coaf e a Receita Federal (no mínimo) como devedores de uma explicação cabal ao país: como pôde uma movimentação de tal monta acontecer sem que soassem os alarmes de que algo errado estava se passando? Uma situação dessas só ser descoberta e revelada pelo acaso de uma dívida não paga é um escárnio com todo contribuinte, que perde tempo fazendo uma declaração correta de IRPF e ainda paga o salário dos burocratas da fiscalização.


Prontas e arrumadinhas


Por fim uma preocupação: o ‘Mineirinho’ sumiu há semanas e ninguém parece estar nem aí para o fato. Se considerarmos quaisquer das possibilidades criminosas citadas acima, são imensas as chances de que a esta altura do campeonato o cidadão esteja comendo grama pela raiz. Só como comparação, o lendário sindicalista Jimmy Hoffa, que desapareceu nos EUA em 1975 e nunca teve seu corpo encontrado, era acusado de ter desviado para uso pessoal cerca de um milhão de dólares de fundos sindicais.


Truman Capote poderia fazer dessa história fantástica um livro best-seller. Bob Woodward e Carl Bernstein alavancariam por meses as vendas do Washington Post dando destaque à investigação do escândalo. O corvo Carlos Lacerda não perderia a chance de acusar sem provas o Tancredo Neves (então presidente do Banco do Brasil) e em última instância o próprio JK de conivência criminosa com o ‘incestuoso miserável’ de Tatuí.


No Brasil de hoje, não acontece absolutamente nada. Será que a ‘cultura da denúncia e do grampo’ – tão meticulosamente construída pela mídia nos últimos anos – acabou deixando as pessoas anestesiadas diante do que realmente importa? Será que os escândalos financeiros só têm interesse para a grande imprensa quando se prestam à exploração político-eleitoral imediata?


Ou será pura e simplesmente a ‘morte da reportagem’, como foi sugerido por Luís Nassif em seu blog – fruto (dentre outros motivos) das redações pequenas e estressadas, sedentas por notícias prontas, arrumadinhas e sem grandes riscos? De preferência com mocinhos e vilões já definidos e o texto embrulhado para presente pelos assessores de imprensa dos deputados ou dos procuradores.


Nos tempos idos em que se preocupava mais em manejar o bodoque do que em proteger a vidraça, o então deputado Aloísio Mercadante comentou entre amigos que era extremamente fácil dar publicidade a uma denúncia de desvio de 15 milhões de dólares, mas era virtualmente impossível chamar atenção da mídia para um desvio de 15 bilhões de dólares.


Parece que as coisas não mudaram muito desde então.

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