Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os grampos e a sede de poder

O que as pessoas ricas fazem com seus impérios de mídia é um assunto polêmico em todas as democracias ocidentais. Essa propriedade não é apenas uma fonte de lucro privado; é uma fonte de poder público, um meio de moldar o mundo para ajustá-lo aos próprios interesses.

Políticos cortejam editores e proprietários de mídia pela excelente razão de que estes podem trazer votos e influir na opinião pública.

Essa é a razão para a maioria das democracias desenvolver regras complexas sobre propriedade da mídia. A Grã-Bretanha, surda para sua importância, é muito branda. Ela não impõe nenhum requisito de nacionalidade; não policia atentamente a participação em qualquer mercado de mídia de um proprietário, nem faz exigências sobre a limitação do poder dos donos para abocanhar participação em outros campos da mídia; nem sequer se importa o bastante para evitar o controle do mercado.

O pressuposto tem sido que uma legislação de competição aplicada com moderação juntamente com a autorregulamentação é tudo que a Grã-Bretanha precisa, sem se preocupar muito com as consequências políticas e culturais. Esta é, eu proponho, a atitude de uma civilização decadente que está perdendo seu orgulho e seu senso de finalidade nacional.

Assim, ninguém mexe uma palha pelo fato de os títulos do Independent, juntamente com o único jornal noturno de Londres, pertencerem a um oligarca russo com alegados vínculos com a antiga KGB.

Richard Desmond, que fez fortuna com pornografia, pôde estender sua propriedade de mídia dos títulos do Express ao Channel 5 sem nenhuma objeção. Os irmãos Barclay, donos dos títulos Telegraph, estão domiciliados nas Ilhas do Canal. E o caso mais famoso de todos, a News International (NI) de Rupert Murdoch, que já é a força dominante no mercado jornalístico britânico, está surgindo como o ator dominante na televisão britânica também, graças à Sky, cujo controle absoluto está tentando adquirir.

O único outro país que se aproxima dessa atitude extraordinária de nexo entre propriedade de mídia e poder é a Itália – com resultados sinistros.

O professor Manuel Castells, o grande estudioso da nova era da mídia, analisa o surgimento dos ‘infocapitalistas’ que constroem redes de negócios e poder político que se reforçam mutuamente com a posse da produção de informação e conhecimento. Silvio Berlusconi é o mais importante deles – o ministro ‘infocapitalista’ por excelência que modifica as leis para acomodar a ascensão de seu império empresarial e depois usa descaradamente o poder decorrente para trazer a opinião pública para o seu partido e publicar matérias caluniosas sobre adversários políticos.

A opinião bem pensante na Grã-Bretanha abana a cabeça, acreditando que esses usos gritantes da mídia em causa própria não poderiam ocorrer aqui. Mas poderiam e ocorrem. A News International não tem menos poder em várias mídias do que a Mediaset de Berlusconi, e apesar de seu dono não ser um político ativo, ela se tornou o principal ator na cena política e midiática britânica, perseguindo interesses que se estendem da regulação a quem vai governar.

Esse é o contexto para se entender a crise crescente enfrentada por Andy Coulson, o secretário de imprensa do primeiro-ministro, David Cameron, sobre a potencial extensão do grampo ilegal de telefones celulares para o correio de voz dos famosos quando era editor do News of the World, o principal tabloide dominical do plantel da News International.

Grampos

Agora, a revista do New York Times publica novas evidências de repórteres do jornal durante a editoria de Coulson insistindo na extensão dos grampos de telefones celulares, como os inquéritos iniciais da Scotland Yard sugeriram, mas que a NI sistematicamente negou. A NI argumenta que o caso se limitou ao ex-repórter que cobria a família real, Clive Goodman, que passou alguns meses na prisão pelo delito que provocou a renúncia do próprio Coulson.

Na semana retrasada, outro repórter do jornal foi suspenso, de novo, acreditamos, por suspeita de grampo telefônico. Coulson disse repetidas vezes que não sabia de outros grampos além do praticado por Goodman e se recusa a comentar de novo o assunto.

Há a crítica usual de que, no mínimo, Coulson está exposto por seus erros de julgamento: se ele não sabia daquilo, deveria saber. Por inferência, a mesma acusação caberia a seu chefe, Cameron. Mas o premiê é obrigado a aceitar a palavra de seu secretário de imprensa, a menos que surjam provas fortes em contrário. Coulson não é apenas bom em seu trabalho, ele leva a vantagem de ter uma extensa rede dentro da NI, a mais poderosa ‘infocapitalista’ da Grã-Bretanha. É o efeito Berlusconi em estilo britânico. Não é uma visão agradável.

Mesmo que o grampo telefônico tenha sido tão isolado quanto a NI e Coulson alegam, o que ficou público foi conduzido com espantosa impunidade. Os editores sabiam que haveria pouca reação. A Comissão de Reclamações sobre a Imprensa, cuja investigação do caso foi embaraçosa e inevitavelmente capenga, não constituiu uma ameaça.

Além disso, a NI tem um grosso talão de cheques. O mais ameaçador é que The New York Times conversou com investigadores da Scotland Yard que acreditam que a polícia metropolitana não queria levar as investigações para além de Goodman; ninguém queria ficar contra a NI.

Embora os trabalhistas na oposição estejam altamente preparados sobre o caso, no governo eles se mostravam menos que impotentes. O ex-secretário do Interior, Alan Johnson, agora pode querer a reabertura da investigação policial; no cargo, ele não quis ofender a NI em plena corrida para uma eleição mais do que a Scotland Yard quer hoje.

Tessa Jowell diz que seu telefone foi misteriosamente grampeado 28 vezes. Por que ela não agiu quando estava no poder? A NI tem a ambição de encolher a BBC, entrincheirar o poder da Sky num monopólio de facto, para se fazer árbitro da política britânica enquanto usa a lucratividade de sua operação britânica para respaldar suas ambições globais.

David Cameron assegurou apaixonada e privadamente, a pelo menos um alto executivo de TV que eu conheço, que não está no bolso de Murdoch, mas ele também não quer perder seu secretário de imprensa.

Nick Clegg e os liberal-democratas têm uma oportunidade de ouro. Eles não deveriam reforçar o tiroteio sobre Coulson a menos que ele seja claramente culpado, mas insistir como contrapartida no estabelecimento de uma comissão de mídia, nas linhas da comissão bancária (uma das melhores realizações dos liberal-democratas e de Vincent Cable), para examinar a propriedade e as regras de competição na mídia da Grã-Bretanha.

Uma mídia britânica plural e diversificada, sustentada por uma BBC forte, deveria estar no cerne do pensamento e da política liberal-democratas.

Curiosamente, nenhum candidato à liderança dos trabalhistas propôs uma comissão dessas, nem explicitou como eles lidariam com o ‘infocapitalismo’ e o poder da mídia privada. Clegg poderia mostrar a seus críticos que a coalizão tem uma dimensão liberal, que ela não é nenhum fantoche de Cameron, e contrapor sua posição à contemporização crônica dos trabalhistas.

Quem defenderá a Grã-Bretanha de sua ‘berlusconização’? Neste momento, os liberal-democratas poderão ser tudo que temos.

******

Colunista do The Guardian