Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os limites da crítica na Bravo!

Quero denunciar uma violência contra a liberdade de opinião ocorrida na revista Bravo! e que, lamentavelmente, parece se anunciar como nova linha editorial a constranger o livre exercício do jornalismo naquelas páginas.Vale lembrar que tal publicação foi criada e é mantida com patrocínios da Lei Rouanet e da Lei Mendonça. Portanto, não é uma questão interna de um veículo privado, mas precisa ser observada em seus desdobramentos enquanto questão de política pública na área de cultura. E, claro, seus efeitos imediatos sobre os jornalistas e comentaristas de cultura.

Há anos colaboro com a Bravo!. Uma de minhas muitas alegrias profissionais foi ter desenvolvido o projeto Caderno T para a Bravo!, um encarte que discutia política cultural e que teve enorme repercussão durante o curto período de sua existência (foi encartado mensalmente na revista, de novembro de 2000 a maio de 2002, quando cessou o patrocínio). Essa experiência foi muito enriquecedora para mim e, com certeza, para a própria revista. Dou apenas um exemplo: após ver que o Caderno T levantava assuntos importantes na área da televisão, a revista incluiu esse segmento da produção cultural como seção permanente.

Teria muitas coisas boas a contar dessa convivência. Até, recentemente, uma matéria de capa (sobre Claude Monet) que fiz. Conforme me relataram alguns editores da revista, essa matéria de capa foi muito elogiada… por Roberto Civita, dono da Editora Abril! Valeria como modelo para o perfil da revista, recentemente incorporada ao Grupo Abril. Nessa matéria, eu escrevi ácidos comentários sobre a atuação de Julio Neves na presidência do Museu de Arte de São Paulo. Imagino que, nesse episódio, a independência de opinião foi valorizada.

Infelizmente, hoje preciso contar a experiência mais amarga que um jornalista pode ter: a censura. Fiquei atônita ao saber que o texto crítico que a revista Bravo! havia me encomendado para a edição de dezembro havia sido integral e sumariamente vetado. Achei que podia ter ocorrido um engano. Tentei contato, via e-mail, com o responsável direto pelo veto, o redator-chefe Ricardo Lombardi. Durante 10 dias e três e-mails aguardei retorno, uma explicação, um diálogo. Quem sabe, um entendimento sobre o que estaria incomodando no meu texto? Talvez um maduro reconhecimento de que ele devia voltar atrás e publicar a minha crítica, para garantir a isenção e a liberdade de opinião de seus colaboradores? Nada. Esse silêncio foi ainda mais ofensivo do que a censura.

Critérios de edição

É vergonhoso que, em plena democracia, um jornalista tenha seu texto totalmente suprimido… por um colega imbuído de espírito censor. Isso nunca tinha me acontecido nem nos tempos da ditadura militar. Comecei no jornalismo no final dos anos 1970. Nessa época, os censores (da Polícia Federal) cortavam algumas frases de meus textos, jamais o texto inteiro. E jamais isso foi feito por um colega de redação. Havia um certo pudor.

Será que o redator-chefe imaginou que a crítica a uma exposição no Itaú Cultural poderia criar problemas para o departamento comercial captar anúncios do banco Itaú para a revista? Reluto acreditar que a saudável separação entre editorial e comercial esteja fora de moda e que o respeito ao leitor seja assunto superado. Temo pela continuidade da revista Bravo!, sua credibilidade e, especialmente, pelos constrangimentos de ‘crítica positiva’ que venha a impor a seus colaboradores de agora em diante.

A desculpa alegada para cortar minha crítica da edição é que ela era ‘negativa’ e que poderia ‘desagradar o doutor Roberto’ (Civita). O que será a tal ‘crítica positiva’, afinal? Algo laudatório, sem compromisso com a análise dos fatos culturais de modo independente? O redator-chefe, há pouco tempo no cargo e na Abril, não explicou. Teria sido ele mais realista do que o rei? Que eu saiba, a família Civita não costuma censurar seus profissionais. Trabalhei na revista Veja no final dos anos 1980 e vivenciei o modus operandi da empresa. Tantos anos passados, nunca tive relato de colegas e amigos ainda ligados à Abril sobre algum cerceamento à livre expressão da opinião.

Também acredito que não interessa ao Itaú Cultural apoiar a censura, até porque criou e mantém o projeto Rumos Jornalismo Cultural, um excelente programa de incentivo a novos talentos na área. O Itaú Cultural estaria dando um tiro no pé se encorajasse qualquer censura aos comentários sobre seus eventos e mostras.

Censura, em todas as latitudes, sempre foi uma atitude burra. Esta, em especial, choca porque parte de quem tem a delegação de uma empresa jornalística para determinar critérios de edição na principal revista de cultura do país. Seus responsáveis estão devendo uma explicação. Se não a mim, pelo menos aos leitores da Bravo! e aos jornalistas em geral.

A seguir, o texto censurado que o leitor não terá na edição de dezembro de 2006 da revista Bravo!



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Sugestão de título: Orquestra desafinada

Sugestão de subtítulo: Itaú Cultural faz evento multimeios com excelente elenco desperdiçado em sobreposições excessivas.

Uma das características mais interessantes da arte produzida na atualidade é a hibridização, o cruzamento entre linguagens, repertórios e meios de expressão. Na história em quadrinhos, no cinema e na música pop há muitos exemplos crossover, isto é, de mistura de estilos e personagens de universos diferentes. Assim, Batman pode encontrar o Super-Homem e a música hardcore pode se somar ao trash metal.

Essa prática fertiliza releituras tão ou mais interessantes no conjunto do que em cada uma de suas partes. É preciso, porém, estar atento à quantidade de ingredientes para a mistura resultar saborosa. Primeira Pessoa, evento multimeios em cartaz até 28 de janeiro no Itaú Cultural (São Paulo, Capital), tem tantos ingredientes que o bolo desandou. Há um entrechoque de estímulos sensoriais que anula as poéticas individuais, algo paradoxal para uma mostra que pretende destacar vozes na primeira pessoa do singular.

Se a intenção era tratar do indivíduo, o local deveria garantir as condições para se ouvir e ver o singular. O que existe, porém, é uma sobreposição de usos do espaço expositivo em que as artes cênicas levam a parte do leão e colocam em dificuldades o espectador que quer fruir as artes visuais. Há também uma mão pesada da instituição na seara autoral da curadoria. Afinal, mesmo o canto coral exige um único maestro. Ao invés, a curadoria dessa mostra está esfacelada em colegiado. Não há primeira pessoa a integrar tudo.

No dia da inauguração, uma estridente bandinha circense se apresentava no mezzanino, a poucos metros da obra de Sandra Cinto, trabalho feito de delicadezas de papel-arroz e sombras projetadas que nos remete ao mito da caverna de Platão e à dúvida sobre a realidade e as aparências. Tudo isso foi totalmente anulado pela ruidosa encenação realizada pelo grupo Lume. Também resultou prejudicada a fruição de outros excelentes artistas visuais presentes naquele andar, como Efrain Almeida e Albano Afonso.

Sem demérito aos talentosos atores do Lume, certamente o espetáculo que realizavam ficaria melhor no auditório existente no mesmo prédio. Ganhariam todos, artistas cênicos e artistas visuais. E, antes deles, o público. O ruído é constante no espaço expositivo do mezzanino graças a uma arena aberta, para 30 lugares, colocada lá. A programação prevista para esse local é ótima e inclui obras de Cindy Sherman e Sophie Calle, mas é invasiva da vizinhança. Novamente nesse caso o auditório seria mais indicado.

Situados em outro andar, Rosana Ricalde, José Rufino e Daniel Acosta desfrutam de melhores condições de visitação. Rosana criou pinturas com fitas rotuladoras plásticas de intenso colorido e somou o recurso da palavra em ótimos ‘auto-retratos’, em crossover perfeito. José Rufino e seus móveis enraizados de grande expressão nos fazem pensar no tempo coagulado das repartições públicas. Daniel Acosta faz reflexão sobre a memória, subvertendo de modo radical a relação entre base e escultura.

Esses exemplos de fruição das artes visuais, porém, são exceção. Submetidos a uma convivência desarmoniosa, artistas visuais, artistas cênicos e músicos perdem potência poética e nos fazem embarcar em paródia involuntária à famosa expressão de Shakespeare sobre a existência humana ser espetáculo de som e fúria que não significa nada.

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Jornalista (São Paulo, SP)