Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os malabarismos da imprensa com o discurso de Lula

O tablóide Zero Hora, de Porto Alegre, é amplamente conhecido como veículo direitista. Não que os outros jornais de média circulação do Brasil sejam distintos neste quesito, mas a questão é que o ZH, nascido com a ditadura civil-militar em 1964, não mexe um dedo para diluir essa fama. Os artigos do Luis Fernando Veríssimo são como ilhas num oceano de reacionarismo. Acontece, porém, que esta não é e nem pode ser uma posição tranqüila, como muitos imaginam. Sustentar práticas ideológicas, de forma coerente, não é o mesmo que sentar no pudim! Se para muitos veículos alternativos não é fácil ser (e continuar sendo) progressista, pois volta e meia eles escorregam e reproduzem posições incoerentes com suas linhas, também é verdade que para os meios conservadores e reacionários o trabalho é bastante intenso. O caso é que o posicionamento ideológico de um jornal nunca abafa completamente as vozes e os sentidos que ele gostaria de calar. Vejamos um exemplo.


Cobertura dada pelo ZH ao discurso de Lula na abertura da Assembléia-Geral da ONU, ocorrida na terça-feira (23/9): chamadinha com fotinho na capa; matéria principal da edição (‘reportagem especial’, páginas 4 e 5); tema do editorial e da charge do dia.


Primeiro estranhamento: se a notícia é tão importante, por que perdeu o espaço da manchete do dia para uma matéria do caderno policial, só veiculada na página 42? Os estudantes e profissionais da área conhecem bem esta artimanha. O jornal optou por uma ação ‘espetacular’ da Polícia Federal nos portos do Rio Uruguai em que foram presos traficantes de drogas. Claro que o grande destaque na capa é grosseiramente desproporcional à matéria, que não ocupa nem uma página inteira e vem quase ao final da edição.


Os cassinos de investimento


Não entrarei aqui na discussão da fórmula mais que batida do jornalismo comercial, que apela para crimes, calamidades e especulações sobre o futuro. Meu interesse, de fato, é na(s) abordagem(ns) que o jornal deu ao pronunciamento do presidente Lula na abertura da assembléia anual da ONU. O título da chamada na capa é ‘Na ONU, Lula defende ética na economia’. Seria uma formulação inocente? Sigamos.


A ‘reportagem especial’ é composta de foto que invade as duas páginas, boxes, tabela, coluna ‘Direto de Brasília’, matéria principal assinada pelo editor do ‘Caderno Mundo’, matéria secundária identificada como vindo de Nova York e uma seção com micro-resumos dos discursos de outros presidentes na assembléia (EUA, França, Argentina e Irã). Dentro da foto, grande e central, dividindo espaço com o presidente Lula, letras garrafais: ‘Lula na ONU. Discurso forte… pouca platéia.’ Três linhas e destaque (com negrito, corpo maior e cor diferenciada do resto) para a última delas, pouca platéia. Só informação? Puro dado relevante para a compreensão da notícia? Elemento utilizado para atrair a leitura da matéria?


O corpo do texto principal. Passados um parágrafo de síntese da fala do presidente e outro com um trecho do discurso para ilustrar a tal síntese feita, o editor é enfático ao carimbar: ‘Infelizmente para Lula, foi um discurso de pouca repercussão fora das fronteiras brasileiras (…).’ O motivo seria que todos estavam mais interessados em ouvir o segundo orador, Baby Bush, e suas saídas para a gigantesca crise financeira que ameaça todo o mundo capitalista e os cassinos de investimento da burguesia.


Banalização e rebaixamento


Vemos, então, que o pouca platéia constituinte do título não se refere, no corpo do texto, ao número de espectadores, mas sim, à pouca atenção dada ao discurso forte do presidente, tanto na cena do acontecimento, quanto na sua repercussão pela internet – visto que a repercussão pela imprensa só poderia ser conferida no dia seguinte. Acontece que não há paralelo no corpo da matéria para isso que supostamente gerou todo o destaque na formatação: a pouca atenção ao discurso do presidente brasileiro em função da irresponsabilidade dos maiores gerentes do sistema capitalista global, Baby Bush à frente. Chega a ser ridículo o espaço dado nesta ‘reportagem especial’ ao discurso do presidente dos EUA, sendo quase o mesmo que foi dado a Ahmadinejad, do Irã, que por sua vez nada tem a ver com a pouca atenção com que o discurso de nosso presidente foi tratado. Sobre o presidente exterminador do futuro, catalisador das atenções, pareceu suficiente ao jornalista (re)escrever que ele tranqüilizou a platéia.


Aliás, voltemos às palavras do texto: esta falta de repercussão foi uma infelicidade para Lula. Não para os brasileiros ou para o mundo, que perdeu a oportunidade de escutar e refletir sobre um discurso contrário à tagarelice neoliberal. Adentrando o quarto parágrafo do texto, vemos mais uma infelicidade para o presidente: ‘a última citação ao Lula datava de 1º de setembro e dizia respeito à demissão da cúpula da Abin, depois do escândalo das escutas’. Será que o presidente dormiu nesta noite? Sobre a utilização do artigo junto à preposição (‘citação ao Lula’), podemos dizer que é um indício de banalização e rebaixamento da pessoa do presidente (e do próprio jornalista). Não lemos por aí coisas do tipo ‘o discurso do Bush’, ‘a ameaça do Putin’, ‘a fala da Cristina Kirchner’ etc. Já em relação ao presidente Hugo Chávez tal fenômeno não nos soa tão estranho. Mero acaso?


Papel de palhaço


E que feliz coincidência (e que importante informação!) na fundamental busca que o editor de Mundo do ZH fez sobre a repercussão on-line do discurso forte de Lula: ele encontrou num site dos EUA, justamente, um grande assunto associado ao presidente, algo que o ZH está adorando agendar e noticiar, o escândalo das escutas. Pois é, tal tema deve ser mais digno de repercussão internacional do que a crítica do nosso presidente ao sistema especulativo global! Sem a dádiva do comentário, naturalizou-se tal ausência de repercussão do discurso forte de Lula e diluiu-se a responsabilidade dos EUA na crise. Podemos, inclusive, lembrar da seleção da palavra ‘ética’ na chamada da capa: ‘Na ONU, Lula defende ética na economia’. Ou seja, pode-se bem interpretar que aquilo que o presidente reivindica lá fora não faz aqui dentro. Acrescentemos que em relação ao que Bush faz e facilita que seja feito dentro de seu país, o mundo inteiro deve aprender a sofrer de forma resignada.


Os dois parágrafos que fecham este texto principal são um remendo dos temas que o presidente abordou no seu discurso forte. Em seguida, uma tabela para desfazer qualquer engano que essa expressão, discurso forte, pudesse ainda causar. Nela, vemos o que Lula disse na ONU, de 2003 a 2007, e ‘no que deu’. Resumindo: nunca deu em nada, a não ser em 2007, com a defesa do etanol, pois desta vez, Lula acertou na mosca. Fora esta vez em que o presidente acenou com um presentão para os gulosos motores yanquees, nas outras parece ter cumprido o papel de palhaço, falando para ninguém.


Imagem de político de esquerda


Na coluna ‘Direto de Brasília’, de Klécio Santos, o discurso efetivamente é outro. As metáforas favorecem Lula. Agora, vemos o presidente dando um puxão de orelhas em seus colegas governantes. Para Klécio, Lula sapateou sobre o colapso do mercado imobiliário norte-americano. O presidente estaria com o moral tão alto que a oposição já sentiria receios de o atacar. Escreve o colunista no final: ‘Resta apenas a voz solitária de FHC’, que, pouco antes do pronunciamento de Lula em Nova York, ‘palestrava nos grotões de Alagoas, desdenhando do petista. Mas, hoje, quem escuta FH?’


E, perguntamos nós, sob o efeito discursivo da ‘reportagem especial’: quem escuta Lula? Claro que muitos escutaram. Mas interessa ver o quanto que, na montagem do ZH, são diluídos e rebaixados os sentidos e o alcance do discurso do presidente, ainda que adjetivado de ‘forte’. Por quê? Por ter significado um dos raros (e valorosos) momentos em que o presidente se projeta criticamente no cenário internacional. Lula, além do seu papel de facilitador da vida dos plutocratas brasileiros no exterior e do seu discurso de defesa dos pobres, desta vez atacou os ricos, e atacou citando o novo poder de articulação dos países do hemisfério Sul, discurso há muito impulsionado por Hugo Chávez – que, diga-se de passagem, foi defendido pelo presidente.


Seguindo o percurso da representação discursiva do fato no ZH, chegamos ao editorial, na página 22. Aí, as estratégias são outras. O título é ‘Responsabilidade global’ e a ilustração é um barquinho feito com uma nota furada de dólar, afundando. O tom é de elogio aberto ao discurso do presidente, o que é feito, porém, de forma a diluir sua importância e particularidade histórica: o texto sustenta a tese de que Lula não fez mais que assumir o velho posicionamento de praxe das preocupações brasileiras. O jornal assina as palavras do presidente sobre a ‘reconstrução da estrutura internacional em bases inteiramente novas’, mas as apresenta de forma burocrática e convencional, silenciando outras palavras que poderiam apontar para a imagem indesejável de político de esquerda (que não caberiam num editorial de apoio do ZH).


A edição dos fatos


Parada final do nosso passeio, a charge do dia, na página 23: Lula oferece uma bag-family, bolsa-família, para banqueiros dos EUA. Outro posicionamento que, com humor, coloca Lula (e o Brasil) em posição de superioridade no mundo.


Antes de fechar, preciso lembrar aqui duas reflexões complementares do filósofo e fundador da Análise do Discurso, Michel Pêcheux: 1) não há ritual sem falhas; 2) nenhuma ideologia é idêntica a si mesma. No ritual ideológico dos ataques conservadores ao presidente saído do operariado e da esquerda, não há como deixar de ser contraditório. E isso pelo simples fato de que o governo do PT tem sido muito mais eficaz que os anteriores nos combates ao próprio movimento sindical e na marginalização da esquerda (vejam o que anda fazendo com os docentes do ensino superior), muito mais eficiente no apoio aos pobres banqueiros e demais especuladores do país (lembrem do escândalo do Proer).


O ex-operário vem se mostrando o melhor presente que o capital poderia receber. Mas ele tem um probleminha para a nossa média imprensa é quase um ‘defeito de fabricação’… é preciso lembrá-lo, a toda hora, que ele é inferior, que ele não tem o direito de fazer e dizer o que bem entende, que ele precisa comportar-se na linha, pois qualquer vacilo (digo, qualquer quedinha à esquerda) será motivo para gritaria nos veículos que formam a opinião das camadas médias – sim, pois os ricos e os pobres não estão nem aí para o que eles dizem, por motivos distintos, claro.


A cobertura do discurso de Lula no ZH é uma verdadeira orquestração de vozes, imagens, valores e posicionamentos contraditórios. Não há como ‘simplesmente’ ser ideológico, visto que esta é uma prática cotidiana que exige a atenção para as falhas de ritual (será que o ZH pode mesmo elogiar este discurso do presidente?), e uma prática que não se faz senão no embate com outras práticas ideológicas (outras vozes, imagens, valores, posicionamentos). Não é possível – nem mesmo a partir da cobertura num único jornal, num único dia – fazer uma equação entre os posicionamentos simpáticos e antipáticos frente à performance do presidente Lula na ONU. O que é possível, sim, é apurarmos nossas lentes de leitura a ponto de percebermos esse imenso trabalho, esse verdadeiro malabarismo, nas distintas tentativas em conter e diluir os significados à esquerda no discurso de Lula. Interessa à nossa média imprensa domesticá-los (como ao próprio presidente, em geral um despachante dos interesses do empresariado). Interessa fazer com que estes sentidos não sejam prolongados, ao ponto deles não se estabelecerem e não produzirem encadeamentos e reflexões de maior fôlego.


Afinal, em meio aos jogos de dizer e não dizer, o combate também se dá sempre no nível da edição dos fatos, no nível de sua interpretação e projeção como dado transparente, óbvio, rotineiro.

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Jornalista formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), professor-bolsista e doutorando em estudos da linguagem na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)