Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os nós do vandalismo nos estádios

Neste domingo o futebol viveu um dia de PCC e Marcola. Quem ligasse a TV veria as cenas exaustivamente exibidas do jogo entre Internacional e Grêmio, e teria a impressão de que o esporte preferido dos brasileiros extrapolou os limites da sanidade. A informação mais importante do episódio lamentável não está no fato, mas na cobertura mais uma vez espetaculosa da imprensa, conferindo importância àquilo que não merece, de fato. Parte ínfima da torcida do Grêmio se dirigiu ao estádio do Internacional com duas intenções claras: depredar o patrimônio adversário e ganhar notoriedade num caso em que o jogo seria, para o grupo, mero detalhe. Conseguiu, parte por irresponsabilidade dos órgãos responsáveis pelo planejamento do espetáculo in loco, parte pela falta de senso comum entre nós, comunicadores.


Não é a primeira vez que damos publicidade a bandidos, travestidos ou não de torcedores. Fazemos exatamente o mesmo que a polícia e os políticos responsáveis pela manutenção de uma polis minimamente civilizada. Despreparados para exercer plenamente nosso ofício, dirigimos nossos instrumentos para a direção errada. O presidente do clube que recebe os baderneiros transfere a culpa ao dirigente adversário, que vaticina: ‘Meus torcedores foram tratados como animais, encurralados numa pequena parte do estádio sem direito a utilizar os banheiros’. Sem perceber a gafe que comete ao generalizar a torcida gremista, mistura o torcedor-fã com o bandido travestido de torcedor. Bota no mesmo pacote duas classes que, de comum, só têm o espaço que lhes foi designado.


A inteligência policial (expressão que, aliás, virou moda) não destacou efetivo suficiente para a partida, subestimando os alertas dados pelos baderneiros, que prometeram ao longo da semana fazer o que de fato fizeram. O roteiro da tragédia estava escrito. Bastava ser executado e rodado.


Sonora com a fumaça


Um dos raros momentos de lucidez se deu quando a partida foi paralisada. Parte do estádio Beira Rio ardia em chamas e o repórter Luciano Calheiros perguntou a um jogador gremista algo do tipo ‘ainda dá para fazer alguma análise do jogo diante disso tudo?’. Não era o tipo de pergunta para a qual boa parte dos jogadores estivesse treinada para responder. Aliás, apenas treinadores estão treinados para responder a algo fora da pauta diária. Poucos treinadores, diga-se de passagem. Personas non gratas pela imprensa, como o hoje beatificado Felipão ou os tão temidos quanto exaltados Emerson Leão e Vanderlei Luxemburgo.


A propósito, o jogador em questão, diante da pergunta do repórter, fez a típica ‘análise do jogo’: o time está lutando, a partida está ‘pegada’ etc. etc. Perplexo com a falta de engajamento do jogador na questão – diante de parte do estádio envolto em fumaça negra asfixiante –, Calheiros tentou situar o atleta no episódio. Em vão. Eles não usam black-tie.


O grau de exaltação dos bandidos era proporcional à agressividade dos despreparados policiais e do deslumbramento de fotógrafos e cinegrafistas. Se pudessem, pegariam uma sonora com a fumaça: como é estar asfixiando os torcedores? Outros comunicadores, mais comedidos, optaram pelo caminho simplista da hipocrisia: eles deveriam ter tomado alguma providência. Esses vândalos não podem continuar freqüentando os estádios. O policiamento está inadequado. Até quando? Onde isso vai parar?, perguntavam-se, tão alienados quanto o presidente de clube que generaliza seu torcedor ou o responsável pela segurança que não anteviu o infeliz desfecho.


Não basta pregar


Vinda da imprensa, dos comunicadores, a pergunta soa esquizofrênica. Eles são parte do espetáculo até o ponto em que lhes convêm. Depois, não se sentem culpados por ‘publicizar’ o fato, como não se sentiram quando abriram infindos blocos de Fantástico e afins para cobrir as ações do PCC em tempo real. Marcola devia estar rindo e pedindo por celular que aumentassem o vandalismo cada vez que o programa abria novo link a um de seus repórteres.


A imprensa está órfã da censura e refém da democracia. Falar em censura na imprensa é como apoiar o nazismo. Pois é hora de dizer: há um tipo de censura que precisa ser considerado. Ela é necessária para que não se dê cartaz àqueles que não merecem. Diferentemente da implementada pela ditadura militar, esta se baseia na defesa dos direitos humanos e numa sociedade não-violenta, a começar pela construção da linguagem. Se vivemos num país em que mais de 90% da população recebem informações via televisão, se reconhecemos que somos, de fato, produtores e formadores de opinião e educadores, por que não direcionarmos nosso olhar e nossa linguagem à reeducação de nossa audiência?


Não basta pregar o fim da violência nos estádios. Enquanto ajustarmos nossas lentes para as arquibancadas violentas e não abolirmos de nosso futebolês palavras como guerra, batalha, tiro, bomba e afins cairemos sempre na hipocrisia da omissão de quem sabe que pode mudar, mas prefere angariar votos para a audiência. O bom-senso agradece.

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Jornalista, Rio de Janeiro