Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os prisioneiros do mecanicismo

Os editorialistas do Estado de S. Paulo pecam insistentemente por serem prisioneiros do pensamento mecanicista. A prova concreta está em ‘Promessa de gastança’, 15/7, domingo. Começam, logo no primeiro parágrafo, se equivocando, em obediência ao equívoco determinado pelo próprio pensamento mecanicista: ‘O gasto federal crescerá mais velozmente que a economia até 2010, último ano do atual governo.’ Os luminares do velho matutino paulista entendem o absurdo: o gasto federal, na cabeça deles, é um dado exterior à economia, ou seja, à realidade. Haveria, de acordo com tal entendimento ideologicamente equivocado da realidade, separação entre economia e gasto público. A economia seria uma coisa, cresceria para um lado; o gasto público, outra, cresceria para o lado oposto. Separação de corpos. Dá para entender? Qualquer criança mais ou menos desinibida sacaria.

Falta, sobretudo, conhecimento histórico. A cabeça editorial do Estadão está ainda no século 19. Pensam como no tempo do padrão-ouro. Não chegaram ao ponto de entender a moeda capitalista pós-1929, o statemoney, inconversível, que veio resgatar o capitalismo para uma nova etapa superior de sua existência. São os gastos do governo que tiram o laisser-faire, a economia de livre mercado, do buraco em que se meteu no limite da crise do padrão-ouro.

Malthus já havia avisado e Marx percebeu a tremenda sacada malthusiana. O mal do capitalismo é o excesso de eficiência. As forças produtivas, impulsionadas pela ciência e pela tecnologia, desenvolvidas em seu limite máximo, em busca da melhor produtividade-lucratividade, derrubam os preços e jogam a economia na deflação. A ineficiência emerge como um postulado dialético. A eficiência depende da ineficiência. É a ineficiência estatal, traduzida em aumento dos gastos públicos, que cria a demanda necessária para sustentar a eficiência, que não se sustenta por si mesma, salvo se tiver o seu contra-pólo como solução.

Faces de uma só moeda

Keynes deixou de lado os ensinamentos do seu mestre Alfred Marshall e seu marginalismo, nascido do curto prazo marshaliano, para cair nos braços do entendimento concebido por Malthus. Marx copiou Malthus ao destacar que o capitalismo desenvolveria as forças produtivas ao máximo, entraria na senilidade, mediante crise de super-acumulação, e passaria a desenvolver as forças destrutivas, na guerra. A moeda estatal inconversível, keynesiana, é o oxigênio da economia de guerra, impulsionada pelas forças econômicas destrutivas, cuja expansão Marx previu. Não há separação entre a economia e os gastos públicos na nova etapa do sistema capitalista inaugurada no rastro do crash de 1929, que enterrou o padrão-ouro. O Estado é moeda estatal, é capital, é dinheiro, é poder sobre coisas e pessoas, como destacou o autor de O Capital, depois que a dinâmica malthusiana se impôs como salvação do capitalismo.

As diferentes formas de moeda que convivem no sistema capitalista, em seu desenvolvimento histórico, representam um fetiche que tem por trás de si as categorias econômicas com seus respectivos poderes financeiros. Há uma representação, por intermédio da moeda, que mascara a realidade subjacente. Não há, depois do crash de 1929, que decretou o fim do capitalismo dinamizado pela produção de bens duráveis e instaurou o capitalismo impulsionado pela produção de bens consumidos pela moeda estatal, a separação mecânica imaginada pelos editorialistas do Estado. O gasto público é a economia capitalista; a economia capitalista é o gasto público. Faces interativas de uma só moeda.

Demanda global

As ‘não-mercadorias’, conceito criado por Lauro Campos em A crise da ideologia keynesiana para determinar os produtos bélicos e espaciais, bem como gastos públicos em infra-estrutura, aumento de funcionalismo público etc., expressam, enfim, o desenvolvimento das forças destrutivas que substituem as forças produtivas, conforme previu Marx. As forças produtivas dinamizaram o sistema capitalista até 1929. De lá para cá, as forças destrutivas comandam o processo, pois aquelas haviam sucumbido à deflação.

Keynes é claríssimo: ‘Penso ser incompatível com a democracia que as forças produtivas se elevem na escala necessária para fazer valer minha tese – a do pleno emprego – salvo em condições de guerra. Se os Estados Unidos se insensibilizarem na preparação das armas, aprenderão a conhecer a sua força’ (A crise da ideologia keynesiana). As forças destrutivas em expansão, por intermédio do Estado industrial-militar norte-americano, assim conceituado por Eisenhower em 1960, comprovam que os gastos públicos, como sonham os editorialistas do Estadão, não são dados exteriores à economia, à realidade. São, na verdade, o âmago da macroeconomia capitalista. Sem eles, o capitalismo voltaria ao perigo do laisser-faire, à demolição deflacionária.

A moeda estatal inconversível é a inversão do mecanicismo argumentativo dos editorialistas. Ela contém em si os seus opostos em movimento. A dívida pública torna-se essencial como instrumento de combate à inflação, necessária para combater a deflação. A inflação aleija, a deflação mata o capital. A dívida pública interna passa a crescer dialeticamente no lugar da inflação. Os loucos economicidas que pensam ser necessário destruir a dívida pública não percebem que impulsionariam a inflação de forma exponencial.

A tese, porém, criou sua antítese. No fim dos anos 1970, a solução keynesiana tornou-se inviável à totalidade do mundo capitalista. Somente quem tem o poder das armas atômicas e o poder financeiro pode manter a moeda dominante emitida sem lastro, como é o caso do dólar norte-americano. As demais foram obrigadas a submeter-se à superioridade monetária da moeda dos Estados Unidos durante quase todo o século 20, especialmente, depois da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria. O Instituto Peel destacou que durante esta última foram gastos 15 trilhões de dólares, dinheiro norte-americano jogado na circulação capitalista, para derrotar, evidentemente, o comunismo soviético, evitando sua expansão sobre a Europa e o Japão. A dívida pública norte-americana puxou a demanda global, permitindo que a produção européia e japonesa se realizassem no consumo norte-americano, enquanto ambas se abasteciam dos títulos da dívida dos Estados Unidos, como ocorre, agora também, relativamente à China.

Neoliberais em excesso

O déficit público norte-americano, no momento, sob preocupações generalizadas, coloca em questão a continuidade da estratégia keynesiana guerreira ante a emergência do euro e do yuan chinês, como tem destacado o economista Joseph Stiglitz. Ver os gastos do governo como algo separado da economia é ver o corpo humano em seus componentes separados do conjunto orgânico, na vã possibilidade de que as partes separadas do todo ganhem autonomia mecanicista. É desejar romper a dualidade do real concreto em movimento dialético. O mecanicismo tenta se impor para evitar que a evidência desmoralize a ideologia previamente construída na cabeça, mas que, na prática, se desmancha.

Certamente, o processo keynesiano – que dominou o panorama econômico mundial de 1936, quando Roosevelt decidiu seguir orientação de Keynes, decuplicando os gastos públicos, que alcançaram 142% do déficit público – perdeu força, pois a dívida pública, como instrumento de combate à inflação, elevou-se extraordinariamente no fim dos anos de 1970. Mas ocorreu uma relativização pragmática, dada pelo próprio poder financeiro e cambial que se manifesta no conjunto do poder mundial. Há países capitalistas e países capitalistas. Há os que podem continuar keynesianos e os que não podem mais continuar keynesianos.

Os Estados Unidos, com o dólar sem lastro, está no primeiro caso – até quando, ninguém sabe, porque é impossível saber. Nos limites do capitalismo, o sistema capitalista, segundo Lênin, sempre encontrará soluções para superar seus impasses. O Brasil e as demais economias capitalistas periféricas, dependentes historicamente da poupança externa para se desenvolverem, situam-se no caso segundo. A moeda norte-americana é um fetiche que tem por trás de si o poder norte-americano, expresso pelos gastos públicos, na escala necessária para fazer valer a tese de Keynes, até que surja o momento em que o mercado financeiro passe a apostar contra o dólar, como é o que começa a acontecer.

Os países do Sudeste asiático já estão trocando o excesso de dólares disponíveis em seus tesouros nacionais por euros. Chávez, por exemplo, faz a mesma coisa, com parcela das reservas cambiais norte-americanas disponíveis no tesouro venezuelano. A visão macroeconômica, excessivamente neoliberal, dos editorialistas do Estadão, impede que vejam o movimento do capital, cuja saúde, ao longo dos últimos 80 anos, depende da dinâmica estatal guerreira impulsionada pelo estado militar-industrial norte-americano. Tudo isso implica entender que gasto público é a economia e vice-versa. Imagine se W. Bush seguisse o conselho do Estadão. Jamais Tio Sam seria o verdadeiro poder.

Cadáveres insepultos

O poder monetário, cambial, como destacou Keynes em entrevista ao repórter Santiago Fernandes, do JB, em 1944, em Bretton Woods (A ilegitimidade da dívida externa do Brasil e do III mundo, Editora Nordica), é o determinante do processo. Ao mesmo tempo, no entanto, tal poder monetário contém dialeticamente sua própria antítese – a desvalorização decorrente do excesso de liquidez, expresso na resistência do mercado ao dólar sem lastro, abalado pelo déficit norte-americano.

Lula, cuja popularidade, avaliada pelas pesquisas Sensus e Ibope, o coloca no patamar dos quase 70%, revela-se artificial, depois da histórica vaia no Maracanã, sábado, 14. Tenta fazer como W. Bush: dinamizar o capitalismo brasileiro, elevando os gastos públicos como pode, pois o setor privado não vai sozinho no processo, mas somente quando vislumbra a eficiência marginal do capital (lucro). Não são outra coisa senão keynesianismo puro os gastos públicos em programas sociais, tipo Bolsa-Família. Da mesma forma, parte dos R$ 25 bilhões a serem destinados à construção das duas hidrelétricas no rio Madeira é ação econômica keynesiana. Igualmente é keynesianismo o lucro financeiro em cima da própria moeda especulativa, o chamado keynesianismo sem obra pública.

O capitalismo, depois de 1929, não aprendeu ainda a fugir de Keynes, mesmo depois que a solução do grande economista inglês se transformou em problema. Delfim Netto, em seu comentário no Valor da semana passada, foi claro: o sistema está entre a estadolatria keynesiana e a estadofobia neoliberal. É o que tentam os governos capitalistas em geral dentro dos seus próprios limites, que são variados.

Traduzindo: gastos públicos ainda dinamizam a produção e a economia. Não são fantasmas que pairam acima da realidade, Como fugir dessa evidência, se a volta ao neoliberalismo do século 19, onde se situam os editorialistas do Estadão, seria apenas um retorno ao útero materno? Vagueiam os coleguinhas, como cadáveres insepultos. Nem Freud explica.

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Jornalista, Brasília, DF