Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Para aquecer as memórias

Enquanto a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial, a Cojira-Rio, sigla sob a qual se revezam e se desdobram em coletivo os jornalistas Angélica Basthi, Sandra Martins e Miro Nunes, anuncia o lançamento nacional, no próximo 10 de maio, do ‘Prêmio Jornalista Abdias Nascimento’, seu personagem inspirador agoniza, aos 97 anos de idade, no Hospital dos Servidores do Rio de Janeiro.

‘Em 1950, a população carioca total compreendia 1.660.834 brancos e 708.459 negros e mulatos, enquanto a população favelada compreendia 55.436 brancos e 113.218 negros e mulatos. Ou seja, de cada três cariocas, um era negro, mas de cada três cariocas favelados, dois eram negros. Porém, até o subdesenvolvimento mental do negro um dia terá fim. Quando isto se verificar talvez seja irremediavelmente tarde. Só então, infelizmente, irão compreender que não será com slogans vazios; não será com a tática de glorificar a miscigenação para a total `branquificação´ do país; não será mantendo os negros brasileiros encurralados tanto no campo como na cidade numa situação de penúria fatal, que eles suportarão por toda a vida o peso da imagem do `negro de boa índole´ que inventaram como mais uma manobra para sua domesticação. A revolta, então, nascerá da injustiça – para tornar uma situação inventada numa situação de fato.’

Este texto foi escrito por Abdias quando tinha 53 anos de idade e era apenas creditado como teatrólogo e diretor do Teatro Experimental do Negro. Texto nascido da perplexidade, da observação crítica, da dor, e nele já podem ser observados os linques do que hoje se discute em relação às ações afirmativas, direitos humanos, relações raciais e políticas públicas relacionadas à população negra.

O texto é de outubro de 1967, portanto, três anos após a morte do líder dos muçulmanos negros, Malcolm X, e um ano antes do assassinato de Luther King, quando Rap Brown e Mc Kinley, líderes do SNCC (Comitê de Coordenação dos Estudantes Não-Violentos) criaram o lema ‘Pense preto’ para abalizar o movimento Black Power. O texto foi escrito no mesmo ano em que o Brasil empossava o seu 25º presidente, o Marechal Arthur da Costa e Silva, que vinte e dois meses depois baixaria o AI-5, ato institucional que dissolveu o Congresso e cassou o mandato de vários parlamentares.

Rap significava esmurrador

Esses fatos, pinçados entre tantos, são apenas para aquecer as memórias de uns e atiçar as curiosidades sobre quem é Abdias Nascimento; que achem justificativas para o prêmio que leva o seu nome, nas incursões na sua vida ou no contexto em que foram forjados seus pensamentos e ações, como jornalista ou ex-senador da República.

Homem de teatro, Abdias conhece bem o que é ritmo de cena; sabe da necessidade dos bastidores, ainda que o público se esgoele no bis, por isso não deixa de ser irônico – e ele concordaria com isso – que a sua imagem pública de ‘homem de pouco riso e muito siso’ esteja prestes a pedir que ‘por favor, baixem o pano’, justamente no quarto de um hospital público localizado na Saúde, área da região conhecida como Pequena África no Rio de Janeiro. Ironicamente curioso é que esta região, ligada à gênese do processo civilizatório carioca, pela memória da escravidão e da sua urbanização, continue alimentando o argumento de ativistas pela causa negra, como um dia fez com o compositor Heitor do Prazeres, e com os jornalistas Luis Gama, José do Patrocínio e André Rebouças, dos quais Abdias Nascimento herdou o DNA combativo. Muito mais irônico e curioso é que vira-mexe-e-remexe, literalmente, aquela região reacende no país a necessidade de catar e colar os cacos para recompor sua identidade negra. Os recentes fragmentos históricos desenterrados pelas obras do Projeto Porto Maravilha não me deixam mentir.

Essas evidências mostram como o pensamento de Abdias Nascimento é provocador e contemporâneo. Sem ele, não é arriscado afirmar, a cultura brasileira não teria as nuances e texturas de cor e peles, nem os sotaques que têm possibilitado ao país sair lá dos cafundós e se expor aos focos da mídia, dialogando pela diversidade das aparências e nivelando-se pelas competências. Seu pensamento ganha mais vigor quando verificamos que foi formulado e exposto numa época em que a retórica dos oprimidos era mais contundente; a periferia por que Abdias reivindicava espaços, ainda não havia se rendido aos flertes e mimos da antropologia nem do mercado. Rap, no seu tempo, significava esmurrador, como pregava o Black Power norte-americano; era pronunciado como uma interjeição; uma senha de comando; uma escarrada, nada a ver com a sonora sigla rhythm and poetry vendida no mercado pop; da mesma forma que hoje, embora exaustivamente conjugado nas manhãs de domingo da TV, o presente do indicativo do verbo esquentar esteja a léguas de distância do que a periferia entende por ‘chapa quente’.

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Escritor, jornalista e autor-roteirista da TV Brasil