Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Para decifrar bulas de remédio

Que boa notícia nos dá a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária)! Até o fim do ano, os medicamentos terão duas bulas.

A versão impressa virá dentro da caixa dos medicamentos, mas em outro português, mais didático, com informações que podem ser entendidas por qualquer leitor. Como se sabe, até agora os redatores das bulas não tinham a mínima noção de quem eram seus interlocutores, do contrário a linguagem seria outra.

Já a versão eletrônica das bulas ficará disponível apenas na internet para médicos, pacientes e demais interessados. Poderá ser atualizada rapidamente. Até agora, quando, depois de administrados, os medicamentos surpreendiam médicos e pacientes com reações adversas imprevistas, as advertências demoravam porque tinham que aguardar nova impressão das bulas. Na versão eletrônica, foi resolvido este problema.

Não é de hoje que o português das bulas preocupa este escritor e professor.

‘As bulas de remédios são inúteis para os consumidores. Além de trazer informações desnecessárias e assustadoras, vêm carregadas de advertências confusas que podem abalar a confiança que os clientes têm nos médicos. O objetivo é fornecer argumentos aos advogados dos laboratórios em eventuais ações judiciais. Os consumidores que se danem’.

Assim comecei a crônica O Português das Bulas, texto que escrevi depois de observar o sofrimento de pessoas simples tentando entender o que diziam as bulas de remédios. Pode ser encontrado em meu livro A Língua Nossa De Cada Dia (São Paulo, Editora Novo Século, 2007, 327 pp.), onde me ocupo também do português da internet, do português de Jânio Quadros, do português dos livros didáticos, do português de Lula, de Odorico Paraguaçu, dos tribunais etc. Mais de cem textos que têm como referência solar a língua portuguesa estão ali reunidos.

Fiz o livro depois de uma conversa com a escritora Lygia Fagundes Telles, que me deu uma interpretação muito criativa da parábola do ‘filho pródigo’. Aliás, ela aplicou o conceito, denominando Filhos Pródigos um de seus livros. Eram contos que andavam meio perdidos e que um dia foram de novo acolhidos por quem os escreveu.

Sobre embalagens

Na versão bíblica, o filho procura a casa que um dia deixou, depois de dissipar os bens que recebera do pai. Na versão de Lygia, os contos voltam à autora, mas é ela quem os procura e reúne. Achei que, assim procedendo, o autor supera em cuidados aquele pai da parábola, pois não espera os filhos voltarem, sai atrás deles e os traz para casa – vale dizer, para o livro. A mídia é muito mais eficiente do que o livro para divulgar os textos, mas é nos livros que eles ficam para sempre e reunidos, fáceis de consultar ou reler.

Não me insurgi apenas contra o português das bulas. ‘A primeira dificuldade é o tamanho das letras’, escrevi então. ‘As letras e os espaçamentos entre os parágrafos no texto da bula devem ficar maiores, para facilitar a leitura dos textos. Essas e outras propostas constam de uma consulta pública da Anvisa que termina no dia 24’, informa Claudia Colucci (Folha de S.Paulo, 16/2/2009, caderno ‘Saúde’).

O médico sanitarista José Ruben de Alcântara Bonfim, coordenador da Sobravime (Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos), propõe uma revisão dos termos técnicos das bulas:

‘Quem sabe o que é xerodermia? Não é mais fácil escrever pele seca?’

Lembro a frase com que encerrei meu artigo sobre o português das bulas: ‘Que os laboratórios chamem profissionais que saibam escrever’.

O cartunista Bob Thaves resumiu, com a costumeira síntese do ofício, outra dificuldade, não apontada pela reportagem. Frank & Ernest travam o seguinte diálogo numa farmácia: ‘É um remédio milagroso: os frascos são fáceis de abrir’.

A jornalista Heloisa Fernandes, que foi minha editora na revista Caras, certa vez me pediu um texto sobre as embalagens, não apenas de remédios, que foi publicado na revista Claudia. Mas este outro filho pródigo ainda não voltou à casa. Preciso encontrá-lo.

De todo modo, a Anvisa deve estar de olho também nas embalagens.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)