Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Para que chatear o governo com perguntas?

A imprensa continua bem educada. O governo ainda não sabe como enfrentar o dólar barato, mas nenhum jornal vai direto ao ponto. Na terça-feira (15/5) o dólar ficou abaixo de R$ 2 pela primeira vez desde fevereiro de 2001. No dia seguinte voltou a cair e chegou a R$ 1,95, a menor cotação em mais de seis anos. É um ‘bom problema’, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O ‘bom problema’ custa empregos, afeta as indústrias mais dependentes de mão-de-obra e de insumos nacionais. O estrago só não é maior porque a economia mundial continua aquecida. Os preços dos produtos básicos permanecem altos e algumas indústrias têm conseguido vender produtos mais caros, compensando em parte a valorização do real.

O presidente e o ministro da Fazenda Guido Mantega reagem como almas em estado de graça. Em menos de uma semana duas agências de avaliação de risco, a Fitch e a Standard & Poor´s, elevaram a classificação do Brasil, agora a um passo do ambicionado ‘grau de investimento’, conferido aos países considerados seguros.

Tempos difícieis

O governo tem motivos para celebrar e algumas bravatas são desculpáveis. Mas um ‘bom problema’ continua a ser um problema e as principais autoridades, apesar do estado de graça, não chegam a negá-lo inteiramente.

Os jornais têm noticiado amplamente a reação da indústria à valorização do real. O câmbio afeta mais duramente alguns segmentos, como os produtores de têxteis, de sapatos e de móveis – mas todos, ou quase todos, têm alguma perda.

Com o dólar barato, o chamado custo Brasil se torna mais sensível: as deficiências da infra-estrutura, os impostos pesados e irracionais, a burocracia custosa e o crédito caro atingem as empresas sem amortecedor. Além disso, o contrabando de produtos chineses torna-se muito mais danoso.

A imprensa também tem fornecido aos leitores uma cornucópia de explicações. Não há muito mistério. O superávit comercial, ainda acima de US$ 40 bilhões em 12 meses, continua a ser o principal fator de acumulação de dólares. O bom desempenho da exportação tem dependido, em proporção não desprezível, da prosperidade internacional.

Mas o crescimento da economia global, o mais duradouro nos últimos 60 anos, tem sido acompanhado de uma enorme liquidez. Sobra dinheiro no mercado. A preocupação com o risco tem diminuído e rios de dólares têm corrido para as economias emergentes, agora em condições de proporcionar bons lucros no curto prazo. Com juros entre os mais altos do mundo, o Brasil é um destino preferencial para essa dinheirama. Isso reforça a depreciação do dólar diante do real.

Alguns governos, como o chileno, têm conseguido amortecer a pressão sobre o câmbio, apertando as contas públicas, mantendo os juros baixos e aplicando o excedente fiscal no exterior. As autoridades colombianas apelaram para o controle de capitais, mas logo depois o dólar despencou para menos de 2 mil pesos. Os mais prudentes cuidam de preparar-se para tempos mais difíceis, quando recuarem os preços das commodities.

Ameaça cambial

No Brasil, o governo ainda não achou o caminho. As intervenções do Banco Central serviram apenas, durante algum tempo, para frear um pouco a desvalorização cambial e para reforçar a acumulação de reservas, agora acima de US$ 120 bilhões. Na terça-feira (15/5) o ministro da Fazenda prometeu reduções de encargos trabalhistas para os setores mais afetados pelo câmbio. Na quinta (17), o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Miguel Jorge, anunciou a morte das empresas obsoletas como conseqüência da valorização cambial.

Mas o grande problema, agora, não é a obsolescência, e representantes da indústria de calçados trataram de rebater imediatamente o comentário do ministro. Algumas das indústrias mais afetadas investiram muito a partir dos anos 1990, precisamente por terem sido expostas, depois da abertura comercial, a uma violenta concorrência. O ministro preferiu corrigir-se. Segundo sua nova declaração, só morrerá quem quiser. Não foi uma grande emenda.

E aí? O governo terá decidido, afinal, como cuidar do ‘bom problema’? A resposta do próprio ministro da Fazenda apareceu no meio de uma entrevista de meia página, publicada no domingo (20/5) pelo Estado de S.Paulo:

‘A desoneração da folha é parte do arsenal. Vai ajudar as que sofrem mais diretamente o impacto do real valorizado. Mas ainda não temos proposta conclusiva. Não tem só uma alternativa (…) Quero tomar a medida quanto estiver amadurecida.’

A confissão é clara: o governo não sabe como cuidar do problema e o ministro da Fazenda, ao responder a outra pergunta, ainda fez uma confusão ao citar a teoria schumpeteriana da destruição criativa. Ora, não há nenhuma relação entre a teoria do desenvolvimento de Joseph Schumpeter (1883-1950) e a ameaça cambial enfrentada hoje por indústrias brasileiras.

Mas a confissão ficou lá no meio do texto, ofuscada pelo triunfalismo do ministro. Segundo ele, ‘o ciclo virtuoso está implantado’ e tudo está melhor que no governo JK.

Ineficiência relativa

A Folha de S.Paulo também saiu no domingo (20) com uma entrevista de Guido Mantega.

‘Não vamos nos meter em nenhuma aventura cambial. O que temos de fazer é aumentar a competitividade das empresas, principalmente das que mais sofrem como câmbio valorizado.’

E daí?

O problema do câmbio não é novo, mas, apesar disso, o ministro da Fazenda, em seus comentários, não vai além de algumas generalidades, como se nunca houvesse pensado seriamente no assunto. Quem tem pensado sobre isso talvez ficasse mais satisfeito se algumas questõezinhas fossem lembradas nas entrevistas:

1. o problema dos tais setores mais afetados é a escassez de investimentos?;

2. seus equipamentos serão obsoletos? (os empresários dizem que não);

3. deveriam importar insumos, como vêm fazendo outros segmentos da indústria?;

4. nesse caso, os ineficientes seriam os fornecedores nacionais desses insumos – como, por exemplo, os pecuaristas e a indústria de couros?;

5. se o governo não quer mexer no câmbio e não se dispõe a mudar seriamente os impostos, em que mais poderá mexer, num prazo razoável?;

6. afinal, o governo reconhece ou não uma situação de emergência para os tais setores mais afetados?;

7. o aumento de importação de insumos – e mesmo de alguns produtos acabados – de fato reflete, neste momento, um diferencial de produtividade entre a empresa nacional e a estrangeira, particularmente a chinesa?;

8. a ineficiência relativa é do produtor nacional ou do país – e de um governo reconhecidamente oneroso?

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Jornalista