Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Para aprofundar o processo democrático

Nossa sociedade é global. Nosso espaço público (também) é online. Se refletirmos profundamente e voltarmos na história, as antigas Ágoras gregas deram lugar a uma Ágora Mundial em constante funcionamento. Séculos antes de Cristo, a Ágora era um símbolo da democracia: um lugar público central para trocar informações, reunir-se com amigos e discutir assuntos informalmente (Baker, Fairchild, Pater & Seavey, 2010). Anos após a revolução do milênio, nossa Ágora hoje é do tamanho da internet, e é representada pela mídia social. Nossa Ágora são as redes sociais.

Ficamos on-line para encontrar amigos e conversar com eles, mas também para discutir assuntos de impacto na nossa sociedade, desde problemas ambientais a questões políticas. Enquanto surfamos nas redes sociais, protestamos e descobrimos novas petições e projetos governamentais. Pelo menos temos a chance de fazê-lo. Temos a ferramenta em nossas mãos.

Nossas campanhas eleitorais também já estão conectadas, e podemos ouvir propostas políticas, compartilhá-las e, algumas vezes, somos os responsáveis por colocá-las na pauta da mídia. Os jornalistas não são mais os “porteiros”, aqueles que detêm o poder de definir o perfil da sociedade. Esse poder está com cada um de nós. Todos somos o que Bruns (2005) chama de “guardadores de portão”: aquele que observa os portões de saída de diversas fontes (desde notícias publicadas até conteúdos gerados por usuários) com o objetivo principal de identificar o material relevante quando este se torna disponível, e compartilhá-lo. A mídia social representa a descentralização da web, e a materializa como nunca.

Promoção da democracia

Democracia pressupõe descentralização de poder em contraste com uma forte centralização existente em governos autoritários. Porém, como um espaço para debates políticos, há muito que se dizer sobre o papel da mídia social no engajamento político, ainda que pareça ter uma relação perfeita com os princípios democráticos. Como Silverman afirmou em seu artigo publicado na página Mashable’s (2010), “a democracia representativa parece ser o lugar perfeito para a mídia social – um canal de comunicação direta entre o governante e o governado. Estaríamos nos encaminhando para um corpo político mais interconectado, ou um novo mar de barulho político inadministrável?”

A resposta vem do uso que todos, inclusive os políticos, fazem dela. Nunca poderemos nos esquecer: na Grécia antiga, a Ágora só possuía um significado devido ao uso que as pessoas faziam dela. Assim como o Facebook, o Twitter e a internet. As pessoas dão aos lugares um significado, uma função. A definição de um lugar depende daqueles que de fato vivem, utilizam e dão a esse lugar uma função (mesmo que virtual), uma identidade no mundo (Augé, 1995). As redes sociais podem ser utilizadas de inúmeras formas.

Segundo Parry (2011), “Aristóteles sugeriu que o tamanho de uma sociedade viável era limitado pela mídia disponível para permitir que os cidadãos se comunicassem ente si”. Assim, todas essas redes sociais expandem os limites de nossa sociedade. Nunca, em toda a história, tivemos uma sociedade desse tamanho. Estamos sempre em uma Ágora digital, sempre fazendo com que milhões de pessoas se levantem. Mas a democracia é mais do que falar alto. É também ser ouvido. É fazer a diferença na sociedade, mobilizar pessoas, promover debates, trocar informações e fazer com que tudo isso seja ouvido por nações.

Nesse sentido, podemos pensar em diversos exemplos internacionais recentes nos quais a mídia social desempenhou um importante papel e de alguma forma aprofundou o processo democrático. Podemos mencionar as revoltas no Irã, as mobilizações egípcias e libanesas, além de outras manifestações nos países árabes contra governos ditatoriais. As redes sociais desempenharam o seu papel por meio da difusão de idéias e do acesso a elas. Tivemos uma comunicação plural, e não um discurso paternalista. A Ágora digital estava abarrotada de gente, e as pessoas podiam conversar e discutir de maneira livre e informal, mas principalmente: elas podiam se organizar, mobilizar um grupo de pessoas sem precisar de instituições. Este último tema virou capa da revista americana Wired esse mês: “os protestos, revoltas e manifestações de hoje são auto-organizados, hiper-conectados – e a caminho de uma cidade perto de você” (Wired, 2011). As redes sociais parecem ter nos motivado novamente a confrontar idéias e nos conectar a pessoas com princípios semelhantes aos nossos, exercer a democracia, a cidadania, como fizemos no passado, porém em uma dimensão global.

Entretanto, esse processo tem dois lados. As redes sociais deram independência aos movimentos, mas também tornaram mais simples identificar protestantes. Isso é bom quando eles colocam sociedades em perigo, como nas revoltas em Londres no início desse ano. Porém, quando tais manifestações ocorrem a fim de promover a democracia, isso é uma vantagem? Como uma ferramenta, a internet possui vários e diferentes pontos, e pode também reprimir a democracia, dependendo de seu uso.

Difusão de ideias

Quanto a relatos, esses movimentos representaram a grande democracia da informação. Não foram apenas relatados por profissionais. Ganhamos também a versão informal dos fatos, inclusive relatos de cidadãos. Como Morozov afirma (2011, p.5), “a revolução do Irã pareceu uma que o mundo inteiro não só estava assistindo, mas também bloggando, tuitando, pesquisando no Google e no Youtube”. Nós não estávamos apenas assistindo, mas relatando.

Por outro lado, quão profundo se tornou o ato de “protestar”? Com a facilidade de se fazer protestos online, na cadeira, algumas vezes essas manifestações nunca saem da tela. Além disso, há tantas manifestações que muitas acabam perdendo força. Essa proliferação às vezes banaliza a força da multidão. As pessoas às vezes acreditam que retuitando realizarão um forte exercício de cidadania. Hoje em dia, é bonito protestar e nos dá certo status online. Às vezes, as pessoas compartilham um tópico sobre a Amazônia somente porque desejam que muitas pessoas vejam e comentem na sua página, sem realmente se importar com o futuro ecológico, ou ainda sem realmente saber do que se trata. Perde-se o contexto a fim de manter um status virtual.

Um exemplo desse tipo de protesto sem maiores conseqüências foi aquele sobre a violência contra a criança em outubro passado, no Facebook. Foi proposto que todos os usuários trocassem suas fotos de perfil por uma imagem de um filme de animação ou desenho, em protesto contra o assunto. Milhares de pessoas o fizeram, mas isso não apareceu fora da página do Facebook. É uma questão importante, mas talvez a proposta não fosse a melhor maneira de abordá-la e discuti-la. É algo a se pensar: seriam as próprias redes sociais um local virtual de democracia, ou estaria isso fortemente ligado ao uso que fazemos delas? Estariam elas aprofundando o processo democrático, ou tornando-o ainda mais superficial?

Entretanto, esse é apenas um lado negativo. Conforme mencionado, também encontramos exemplos de verdadeiro engajamento civil com fortes conseqüências fora do ‘mundo virtual’, a fim de alcançar a democracia ou um bem maior. As redes sociais tornaram mais fácil engajar as pessoas em assuntos da sociedade, além de tornar possível protestar (ou acreditar que se protestou) sem sair do ar-condicionado ou levantar da cadeira. É bom, mas também é triste. Precisamos pensar no próximo passo, além dos “protestos apenas virtuais”. Como um meio de disseminar a informação, as redes sociais são uma importante ferramenta de engajamento social, mas devem ser vistas como meras ferramentas e não como o processo democrático em si, ou a própria democracia. As pessoas devem utilizar a rede pelo seu potencial de ampliar o âmbito de suas vozes e organizar protestos, mas não pensar que tudo é feito por meio de um clique no botão ‘compartilhar’, ou escrevendo uma forte hashtag. Ser um cidadão engajado é mais que compartilhar tópicos nas redes, ler poucas linhas sobre temas polêmicos no Twitter ou assistir a vídeos curtos no Youtube. Você pode nos deixar orgulhosos do seu uso da mídia social como uma ferramenta democrática e uma maneira de aprofundar o processo democrático, mas você também pode nos deixar envergonhados com a superficialidade do mau uso delas. Depende de você.

É inegável: a mídia social tem muito potencial, e ele está relacionado também com a democracia da informação, que começou com a Web, e pode estar relacionado com todo o processo político e democrático uma vez que pressupõe cidadãos engajados e esclarecidos. Porém, ao refletir profundamente sobre esse assunto, é importante diferenciar o acesso à informação do processo democrático político ou ainda do processo de comunicação como um todo. Wolton (2010) colocou em evidência a grande diferença entre ‘informar’ e ‘comunicar’. O fato de que muitas informações e histórias jornalísticas estão disponíveis não significa que todos realmente as entenderam ou, em outras palavras, que o processo de comunicação realmente aconteceu. O fato de muitas informações serem publicadas na Web não significa que todos terão acesso a elas. Dessa forma, podemos pensar que toda a Web e as redes sociais tiveram que enfrentar muitos desafios em relação ao processo democrático: tanto o excesso de informação quanto a credibilidade das questões ali postadas.

Esse fato da chance à manipulação de informação, e muitos governos autoritários já perceberam isso. Segundo Morozov (2011a), “adquirimos inicialmente uma visão muito errônea de como os governos controlariam o espaço cibernético”, relacionando isso apenas à censura na internet. E acrescenta ainda: “é definitivamente mais que apenas censura; como mencionei, é também propaganda, são os governos tentando manipular a opinião pública online, são também os governos, particularmente os da Rússia e da China, permitindo a todos os governantes, famílias reais e usuários independentes, comprarem importantes ações de grandes empresas na internet e, depois, aplicar um clima de liberdade de expressão muito restrito”. Portanto, temos que pensar em muitas outras possibilidades, inclusive o potencial para difundir informações erradas ou inventadas, a fim de denegrir debates políticos de cidadãos contra governos ditatoriais, e também sobre a possibilidade de estratégias para difundir idéias autoritárias ou extremistas nas redes sociais. A mídia social pode ser um lugar para difundir ideias sobre democracia e promover discussões políticas, mas pode ser uma ferramenta para difundir ideias autoritárias também. É uma ferramenta, e somos nós que designamos sua função e identidade.

Espaço e tempo

Apesar de tudo isso, no Brasil, várias iniciativas nos deixaram orgulhosos do uso da mídia social e da internet no aprofundamento do processo democrático, e elas nos mostraram que é possível fazer isso. A cidade de Belo Horizonte é um exemplo perfeito. Ferenstein (2010) publicou um longo artigo no site Mashable’s intitulado “Como o Brasil está Abrindo o Caminho para a Democracia Eletrônica”. Em seu texto, ele destaca que, apesar de todos os problemas políticos brasileiros, inclusive a corrupção, algumas iniciativas são vistas no mundo todo como exemplos do processo democrático. Ele lista o orçamento participativo de Belo Horizonte, offline de 1993 a 2006. Segundo ele, “em 2006, o governo mergulhou em seu primeiro experimento democrático eletrônico, alocando fundos adicionais aos cidadãos que participassem online. Essa porção totalizou cerca de um quarto do seu orçamento participativo normal. Em vez de reuniões em pessoa, a plataforma online educou os cidadãos através de textos e arquivos multimídia. Os formulários online permitiram o diálogo prolongado entre cidadãos, especialistas e políticos, e um membro dedicado da equipe fornecia e-mails sem demora em resposta a questões diretas”. Enriquecendo o debate e motivando as pessoas a se engajarem politicamente, o projeto mostra as muitas possibilidades da internet e da mídia social: transformá-la verdadeiramente em uma Ágora digital. Além desse, outros exemplos podem ser listados, incluindo o movimento jovem ‘Porto Alegre, Como Vamos?’, fortemente baseado nas redes sociais, e que propõe refletir sobre a cidade e seu governo. Podemos destacar também o protesto contra a hidrelétrica de Belo Monte no estado do Pará, que ainda está acontecendo. Em números, o apelo virtual contra a construção da hidrelétrica já tem mais de um milhão de assinaturas. Não evitou a construção (até agora), mas colocou o tema em pauta na mídia e na sociedade. Talvez estejamos aprendendo a utilizar mais intensamente o potencial das redes sociais a fim de mostrar nossa força. Em algum momento no futuro, veremos o que pudemos fazer sobre esse assunto polêmico.

Enfim, a mídia social pode ser utilizada para aprofundar o conhecimento sobre questões sociais, refletir sobre como a sociedade e as redes sociais podem ajudar a compartilhar esses conteúdos, mas é apenas uma pequena parte do processo democrático. Temos que falar, mas temos que ser ouvidos e encontrar maneiras de trabalharmos juntos para alcançar isso. O Facebook e o Twitter podem nos ajudar a encontrar soluções para promover mudanças, mas não por si sós. Morozov (2011) afirma em seu livro que a revolução necessita de liderança e compromisso. Nas redes sociais, é tão fácil apoiar uma causa quanto não apoiá-la ou desistir dessa ação. Não há o mesmo comprometimento que existe na vida real.

Como uma Ágora virtual, as redes sociais têm potencial para aprofundar o processo democrático, mas isso depende do uso que fazemos delas. Aqui, voltamos ao mesmo pensamento do início deste texto: sempre há seres humanos além das telas. Portanto, o que faremos com as ferramentas disponíveis está em nossas mãos. Quanto à mídia social, não podemos negar algo importante: nosso espaço público tem o tamanho do mundo e nossas vozes podem percorrer o mundo. Nos levantamos em uma Ágora sem limites de espaço ou tempo. Se a democracia será tão grande assim, ainda depende de nós. Segundo Shirky (2005, p. 160), “a revolução não acontece quando a sociedade adota uma nova tecnologia, mas quando a sociedade adota novos comportamentos”.

Referências

Augé, Marc (1995). Non-places: introduction to an anthropology of supermodernity. Croydon: Bookmarque Ltd

Baker, Paul. Alea, Fairchild. Pater, Jessica. Seavey, Art. Community, Participation and Virtual Spaces: Design Considerations for Inclusivity. In O'Donnell, Dave (ed.). Proceedings of the 10th European Conference on E-Government: National Center for Taxation Studies University of Limerick, Ireland 17-18 June 2010. Kidmore End: Academic Publishing Limited.

Bruns, Axel. Gatewatching: Collaborative Online News Production. New York: Peter Lang Publishing.

Ferenstein, Greg. (2010, 14 September). How Brazil is Blazing a Trail for Electronic Democracy. Mashable. Accessed on 28/12/2011. Available here.

Morozov, Evgeny (2011). The Net Delusion: The Dark Side of internet Freedom. Philadelphia: PublicAffairs.

Morozov, Evgeny (2011a). The Net Delusion Interview. Interview made by Tracy Bowden in the Australian Broadcasting Corporation. Accessed on 29/12/2011. Avaliable here.

Parry, Roger (2011). The Ascent of Media. Boston: Nicholas Brealey Publishing.

Shirky, Clay (2008). Here Comes Everybody: the power of organizing people without organizations.London: Penguin Group.

Silverman, Matt. (2010, 01 November). The Future of Social Media and Politics. Mashable. Accessed on 28/12/2011. Available here.

Wolton, Dominique (2010). Informar não é comunicar. Porto Alegre: Sulina.

Wasik. Bill. (2012, January) Crowd Control. Wired, iPad’s digital version.