Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Pela desnaturalização dos desastres

‘Forte terremoto atinge o Haiti.’ Esta frase e outras decorrentes dela ditaram a cobertura da mídia nacional durante a última semana. A imprensa, ávida por imagens da tragédia – salvo alguns raros contatos pela internet com sobreviventes – não conseguiu, no primeiro momento, ter acesso à capital do país, Porto Príncipe, local que mais sofreu com o tremor de 7.0 graus na escala Richters. Principalmente na cobertura televisiva, onde a imagem é o principal pilar da informação, a ausência de novos dados que transmitissem os estragos e a situação dos haitianos fez muito falta. A solução encontrada foi resgatar, em arquivo, reportagens antigas de outros desastres naturais – cenas que mostrassem a imensa pobreza da pequena ilha. Alguns telejornais usaram o GoogleEarth, programa da Google, e ‘visitaram’ Porto Príncipe mostrando a organização urbana da cidade, altura do prédios destruídos etc. Teve um impacto mais tecnológico do que informativo.

É interessante pensar porque o passado pode, nesse caso, servir tão bem para explicar o presente, mesmo em um mundo cada vez mais instantâneo. Isso não é um mero acaso. O cotidiano dos haitianos é como passar por um terremoto diário. Não há comida, moradia, emprego, quem dirá sistema preventivo a desastres naturais. A enorme desigualdade social revela o incrível número de 80% da população abaixo da linha da pobreza.

Ajuda humanitária e financeira

O Haiti entrou para a história como o primeiro país da América Latina a conquistar a sua independência e decretar o fim da escravidão. A primeira República da América Latina foi uma República Negra! Contudo, a abolição da escravatura não significou abolição da miséria. Os interesses estrangeiros que, inicialmente, tinham como principal objetivo a exportação de matéria-prima barata, passou para a instalação de algumas indústrias e o uso de uma força de trabalho extremamente barata. Somado a essa economia excludente, tem-se um país localizado no encontro de placas tectônicas e no caminho da rota de furacões e tufões. Essa é a combinação responsável em fazer do Haiti o país mais pobre da América Latina.

Relatos de um grupo de estudantes da Unicamp que atualmente estão no Haiti (ver aqui) colaboram, através de postagens, com a divulgação de informações depois do terremoto. Em outros posts, eles fazem importantes declarações, como o relato de que algumas indústrias em território haitiano privilegiam a mão-de-obra de surdos e mudos, já que estes trabalham rápido e em silêncio. Seria uma coincidência com os preceitos fordistas? Comentam que brancos não circulam nas ruas, a não ser sob uniforme militar. Será medo, repulsa ou simplesmente o desejo de ignorar os custos advindos da ‘sociedade do consumo’? Há, também, uma acusação grave: a ‘força de paz’ brasileira, em alguns momentos, acaba servindo como um agente repressor dos movimentos sociais reivindicatórios da população.

Os Estados Unidos, ainda a maior potência do planeta, e outros líderes mundiais prometeram ajuda humanitária e financeira. Inclusive algumas celebridades, tais como Angelina Jolie e Brad Pitt, também manifestaram apoio em prol dos haitianos. Sem dúvida, toda esta colaboração é necessária e vital. Muitos outros morreriam sem elas.

À espera de novo desastre ou golpe político

Mas, não há motivos para não perguntar: por que essa ajuda não veio antes? Três mil pessoas morrerem por ano devido à fome, doenças curáveis e violência pode ser ignorado. A morte de 30 mil, ao mesmo tempo, precisa de ajuda? Imagino o que Obama, Nobel da Paz, responderia a perguntas como estas. É válido gastar milhões para controlar o petróleo, todavia para a fome só quando isso for dar manchete ou se o seu silêncio for ofensivo.

O refrão da música de Gil e Caetano diz: ‘Pensem no Haiti, o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui’. Seria bom se pensássemos mais na pequena ilha da América Central, talvez as ações de cooperação deixassem de ser pontuais. Além disso, poderíamos pensar no Haiti que temos dentro do Brasil. Ao invés de comemorar a ‘recuperação’ da crise, pensar o que significa esse crescimento econômico? E quais suas implicações?

Nesta semana começou, na Globo, o Big Brother, na Record, A Fazenda. Logo começa a Copa do Mundo e arriscamos que tanto a mídia, como o público, vai ocupar seus pensamentos e o seu tempo com esses e outros temas. Até quando as pessoas vão sentar solenemente em seus sofás, se indignarem por meia hora diante dos telejornais, e depois viverem a catarse dos reality shows, onde os sacrifícios e as dores são momentâneas, artificiais e recompensadas por automóveis, viagens e prêmios de milhões de reais? O Haiti, que vai continuar sendo o país mais pobre da América, só será lembrado em um novo desastre ou golpe político. Estamos errados? A história (que é feita pelos homens) certamente dará a resposta.

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Respectivamente, doutoranda em Sociologia pela Unicamp e estudante de Jornalismo na Unesp/Bauru, SP